#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

Inês Forjaz,


"Belo rabo!" - ouvi há pouco, enquanto passeava o meu belo rabo numa rua de Lisboa. A boca foi atirada dum carro em andamento, o que me impediu de devolver a javardice com outra javardice sobre o tamanho da pila do javardo - táctica de guerrilha que a experiência já me mostrou que funciona muito bem. Isto fez-me recuar ao tempo da pré-adolescência, altura em que comecei a andar com camisolas ou camisas atadas à cintura, fizesse chuva ou fizesse Sol, numa vã tentativa de esconder o belo rabo. De nada adiantaram as conversas com uma prima mais velha, que num Verão quis convencer-me que o belo rabo era de família, que devia ser motivo de orgulho e não era para andar escondido. A mania só passou quando senti que já sabia defender-me dos tarados por rabos.

Tenho lido aqui os testemunhos das mulheres que decidiram partilhar as suas histórias de assédio continuado. Impressiona-me muito que todas, sem excepção, tenhamos começado a aturar isto ainda meninas. Todas nos lembramos do vestidinho que usávamos, da confusão por não percebermos o que era, do instinto que nos disse que não era coisa boa, do nojo, do medo. Impressiona-me que todas tenhamos sido apalpadas na escola. Impressiona-me que todas nos tenhamos sentido desconfortáveis na presença de homens mais velhos, muitas vezes insuspeitos e "de confiança". Impressiona-me que as minhas filhas, que herdaram o belo rabo de família, continuem a ter de defender-se dos javardos que conseguem não tocar numa obra de arte de que gostem, mas que são incapazes de se controlar perante a visão dum belo rabo.

Não tenho muito a acrescentar às histórias que já aqui foram contadas, por serem as nossas experiências tão semelhantes. Talvez uma, porque me deixou mesmo em baixo e sem vontade de disparar piadas básicas sobre pilas pequenas. Um javardão, na rua, tendo eu a minha filha mais velha ao lado: "serão mãe e filha? o que eu não dava para ter esses dois belos rabos ao mesmo tempo na minha cama"...

EDIT: acrescento fotografia, de vestidinho. O tipo de vestidinho infantil que vestia da primeira vez que fui incomodada por um tarado. E assim se soma mais uma imagem às outras imagens com sorrisos inocentes que já aqui vimos. E todas sabemos o que é que acontece a estes sorrisos inocentes quando somos atacadas pela primeira vez, não é?

 



... todas sabemos o que acontece a estes sorrisos inocentes quando somos atacadas pela primeira vez, não é? 

Célia Silva Ramos, 51 anos

 Da série “Querem nomes?” Episódio: Encenadores


Ao longo de tantos anos, nunca pensei que estas estórias, pelas quais passei, viessem a afetar tanto o meu percurso como mulher e sobretudo como artista (atriz). Também pensei nunca vir a contar em público estes episódios que, sem dúvida, foram mudar para sempre todo o meu trajeto feminino e profissional. Uma mudança - ou degradação -, que é sempre gradual, até ao momento em que percebes que tens um problema grave de autoestima. A dor aparece por cada frincha do teu ser e pensas que vais sucumbir ao desatino e não compreenderes totalmente de onde ela vem. Na verdade, e no meu caso, não tive de imediato consciência do quanto iria ficar marcada e ainda mais fragilizada a todos os níveis de mim.

Vou acompanhando a minha escrita e percebo o acelerar do coração, os olhos a quererem abrir de novo portas a águas que quero passadas. A demora, o arrastar, as voltas que vou dando ao texto, até confrontar a verdadeira força e a intenção do que me faz vir aqui testemunhar. Reflito: será a vingança tantas vezes almejada? Será a raiva tantos anos acumulada? Ou apenas aproveito a onda do momento do #metoo a chegar finalmente ao nosso paisínho plantado à beira mar? Ou mesmo a solidariedade? Ou a força que quero também partilhar para ilustres colegas abrirem os seus cofres preciosos de estórias macabras, de macacos babados? Ou simplesmente porque já nada receio perder ou desejo receber deste meio, desta profissão, desta arte que amei e que terá sempre um cantinho no meu coração.

Porém, e se me atirarem à cara, que no fundo estou a buscar audiência, apenas responderei: - O cara** que te fo**! – E aqui está a parte ainda pouco sanada em mim (não precisam de dizer ou pensar que é um problema meu a resolver, porque já o sei muito bem.) Sei que se deixar passar esta oportunidade me irei voltar a fechar e talvez nem no túmulo conseguirei contar aos bichos que me irão saborear. Merda, custa contar, custa contar porque foram muitíssimos anos a sentir que é normal passar pelo que se passa quando não tens poder, quando não podes contar porque é uma vergonha não te saberes defender, porque até acreditaste que afinal, a tua mais valia era a tua caixa e não o teu conteúdo. Porque finalmente percebes que assim são as regras do jogo e tu és uma péssima jogadora, porque até é de mulheres que gostas e nem sabes muito bem lidar com eles, os gajos. E foram eles que te quiseram comer, tu disseste não, e nesse momento deitaram-te fora (toda tu, mulher e atriz).

Será agora que ganho a necessária coragem?

E na verdade, até não é necessária tanta coragem, pois mais difícil seria começar pela família - que é neste seio que a contaminação se inicia. Mas não irei contar episódios que podem desencadear ainda mais feridas. Nem irei também contar tantos momentos burlescos tão parecidos ou iguais a tantos relatos aqui expostos. Apalpões na adolescência, encostadas à parede e mãos a descobrirem talvez a cor das cuecas que vestia, os autocarros convenientemente cheios para sentir nas coxas o roçar deliberado do membro duro do rapazito que te segue na escola faz dias. Na praia o show decadente de masturbações de onde tens que sair porque a culpa é tua de gostares de estar longe do barulho das famílias, das crianças histéricas a jogar a bola. E mais cresce a culpa, por estares com a tua namorada nas dunas da praia. E és derradeiramente culpada porque tu gostas de te desnudar e devias estar de biquíni, quem sabe assim ele não ousasse sacar a “pistola", pensando que querias morrer de amores ali. As infindáveis estórias nas primeiras idas às discotecas onde na permissão do primeiro beijo molhado, te sai o garanhão que não compreende a frase “não quero ir mais longe" e te obriga a tocar-lhe para o satisfazer, algo para o qual tu ainda nem despertaste e nem sabes como se faz (mas ele teve o cuidado de te ensinar bem). Enfim, são tantos e tantos, que neste capítulo do assédio menor – sem ofensa do “menor”, apenas para explicar que estes não deixaram tantas marcas como os que considero de fato traumáticos. Aqueles que tu deixas que te alterem completamente e para sempre a vida. Será curado com o tempo, assim admites a ti mesma, quando queres encobrir a tua própria vergonha de teres passado “a normal experiência e comum da mulher” - algumas foram poupadas?!

Fiz o meu primeiro curso de teatro, na ACE, no Porto e já lá vão quase 30 anos. Na altura e para pagar os estudos e estadia, fazia muito teatro de rua e outras pequeninas intervenções artísticas, além de trabalhar em bares e restaurantes. Mas não tinha experiência no mundo das companhias e nos meandros e enredo do sistema de trabalho artístico. Já tinha percebido que não seria assim tão simples arranjar trabalho. Percebia pelos colegas que saiam da escola e ficavam desempregados. Percebia pelos grupos de " amiguinhos" que se iam formando na escola onde eu não conseguia fazer parte porque e até hoje nunca fui nem de " grupos", nem de "guettos", se é que me faço entender. Sou até muito caseirinha e ser bicho do mato nesta profissão - é uma quase sentença de morte.

Estava no início da carreira, recordo que estive em Lisboa por alguns meses no "Crime da aldeia velha“ encenação do Avilez e que a experiência de bastidores foi terrível. Era eu uma jovem imberbe e inocente mais interessada em usufruir da capital e dos seus encantos, do que propriamente em fazer amizades interesseiras com colegas desse então (alguns hoje até " grandes" nomes do teatro Português). Ui o que lá se passava entre as novatas atrizes. Recordo sentir-me muito desconfortável no meio dos atores de Lisboa, sobretudo das atrizes que me olhavam com muita frieza. A quantidade de vezes que me perguntavam se eu, depois desta peça, já tinha outra proposta de trabalho. Sempre que dizia que sim, que já tinha trabalho no Porto, passava a ganhar uma " amiga" no elenco. Menos uma ameaça. Saí de Lisboa aliviada. Mal eu sabia o que me esperava no TEP (Teatro Experimental do Porto)

Agora sim, tenho o coração a ter quase uma arritmia, preciso de ir beber água para continuar. Seria tão mais simples estar a interpretar uma estória escrita pela Maria João Pessoa, ou por ti querida Bésinha ou um Hamlet ou mesmo “Petra Von Kant”. Vá, eu sei, agora é ir até ao fim. Nada mais tenho mesmo a perder! Ou terei? Claro que sim, que ainda terei. Como sempre terão os primeiros que quebram as normas, as regras que já estão anacrónicas, todo o rebelde que quebra o paradigma é quebrado. Como o batalhão da frente, quantos se salvaram…. Muito poucas atrizes que estão no ativo e não encontraram outra forma de sobrevivência, jamais iram contar. Pois o seu ativo não se encontra assegurado pelo estrelato que provavelmente nunca alcançarão. No meu caso, na realidade, já não tem importância porque sabes que tens outra farda, outra mulher teve que ser parida em ti à força e até encontraste outro ganha- pão. E até já percebeste tudo, é esse o serviço que te presta o sofrimento: coube-te a ti esta escola de vida, por isso aprende a viver, Célia, de uma vez. Mas sim, irei partilhar num derradeiro grito de Ipiranga feminino. A avó sem netos que quer salvar os netos na mesma.

Entrei nos ensaios, super contente, afinal, e desde que tinha saído da Academia, nunca tinha ficado sem trabalho e já lá iam quase 3 anos. Ao lado de colegas com muito mais anos e prática do que eu, ena, sentia-me quase privilegiada. Só pensava o quanto iria progredir e aprender. Um elenco de luxo e um encenador vindo de Lisboa e numa companhia, o TEP, que, apesar de na altura já não estar no seu auge, era ainda uma companhia que oferecia trabalho de qualidade a muitos de nós artistas. Seria (talvez) a mais jovem do elenco. Os ensaios corriam de vento em pompa e mais ainda quando o encenador, com quem já tinha tido um encontro ainda em Lisboa, proporcionado pela minha ex-professora de Tai chi da ACE, me convida para também ser sua assistente. Que tendo eu um personagem que não estava sempre em cena me daria tempo de fazer estas anotações cénicas e que no fim de cada ensaio, me iria reunir com o dito encenador e passar as anotações. Foram vários dias assim, em que cada vez mais estas reuniões finais se alargariam a conversas e a um convite para tomar um copo na Ribeira. Um merecido relax depois de um dia e noite de trabalho - palavras dele. Aceitei e recordo comentar com a minha namorada, na altura, que já estava a ficar incomodada pela minha chegada sempre tão tardia. Não eram ciúmes, mas sabendo que era uma cortesia que fazia ao encenador desterrado por uns meses lá no Porto, achava que eu estava a ser demasiado generosa sem receber mais por isso. Falei com ele e aproveitei para lhe dizer que tinha namorada, pensando eu que tal fato, me protegeria de qualquer avanço mais indecoroso da sua parte. É claro que já me tinha passado pela cabeça, que aqueles convites levavam "água no bico".

(Pausa)

- Que faço eu?

- Que fazes tu, quando sabes que és novata na profissão. És uma mulher jovem e não sabes lutar bem com estas situações embaraçosas. Pois não tens nome, nem peso no mercado, e as coisas até estão a correr bem e tu não queres estragar. Que de alguma forma almejas os grandes teatros, os grandes palcos, os grandes textos. E que fazes tu, quando não queres dar a entender que até já percebeste o que ele quer?!

Ele um homem solito na invicta, longe da sua cidade, onde terá a esposa e filhos. Ele um encenador com já alguma fama e peso no mercado. Ele que aqui é "livre". E tu, na tua própria cidade, começas a não te sentir livre. Até porque o momento que o deres a entender, que já percebeste o que ele deseja, vais ter que te posicionar. E tens medo de o ofender na sua masculinidade. Também tens medo que ele negue e te deite por terra e te diga que: "deves ter a mania, não?!" Fui reduzindo as horas com ele no final dos ensaios e deixei de ir à Ribeira, alegando cansaço porque afinal, dava aulas de Expressão Dramática pela manhã.

E eis que todos os receios que tinha, chegaram em cada ensaio que começou por ser uma tortura. Claro, de tantas recusas e esquivos meus, ele finalmente percebera que o "rejeitara". Rejeitei os seus velados convites fora e dentro do trabalho. Alterou o seu comportamento para comigo, uma exigência e arrogância no seu modo de me orientar. Sentia que os meus colegas percebiam que algo não estava bem. Mas o comportamento era total indiferença. Como se me dissessem: - "cada um que se 'desenmerde' da melhor maneira que sabe". Quase todos os momentos me ficaram marcados. Quando era a minha vez de entrar em cena, ainda em ensaios, toda eu tremia como varas verdes, o medo de fazer algo mal como ele já me tinha acostumado, aos constantes insultos ao meu trabalho durante e nas notas finais de cada ensaio. Ouvindo várias vezes que era péssima atriz. Fizeram recordar-me algumas aulas com o Rogério de Carvalho que e apesar de sentir que até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me dizer que com uma perna torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro – opa Sr. professor, tiveste razão caralho! (Fui diagnosticada aos 10 anos, com uma doença de Calvin Perthes na anca direita - valeu-me 12 cirurgias e um joelho deformado – e todo um processo caótico de autoestima.)

Recordo uma entrada que tinha na peça, na qual tinha que projetar uma gargalhada e que me saía tão forçada. Fazia-me suar de vergonha, por saber que era horrível como atriz e nos comentários finais que ele dava a cada ator, eu levava sempre negativas. Houve um dia que quase cheguei ao meu limite. Ele quis explorar algo no meu personagem e pediu para despir a parte de cima, ficar com os seios a descoberto. Uma cena, onde eu dançava no meio e os colegas agarravam a saia grande e rodada que tinha. Eu, e quem me conhece, sabe bem que sempre tive muito à vontade com o meu corpo nu. E ainda hoje, sou uma fervorosa adepta de me desnudar ao sol numa praia deserta assim como numa situação artística, que eu considere adequada. Ali, naquela peça, naquele momento, naquele enquadramento, senti-me violada (mal eu sabia que era exatamente o que estava a acontecer). Recusei, houve uma discussão feia, fui a correr para os bastidores chorar. Colegas assistiram e mais uma vez o tal " assobio para o lado". Uma das colegas mais velhas, até me deu uma palmadinha nas costas dizendo, " vá, isso passa, recompõe-te miúda, temos uma peça a finalizar". Hoje acredito que estas palavras também queriam dizer: Vá miúda, eu também já por lá passei, anda lá se não queres ficar sem trabalho.

Tinha um amigo, o diretor da companhia com quem falei e com quem me abri. Pois cheguei ao ponto de dizer ao Júlio, ou eu ou ele. Pobre inocente e ingénua de mim. Mas sim, o Júlio apreciava-me como atriz e amiga. E lá teve uma conversa com o dito e as coisas ficaram mais serenas. Estreamos. Não foi nada de especial, com muito pouco impacto no público, apesar de bons atores e música maravilhosa do João Loio. Acredito que nenhum trabalho artístico (ou outro qualquer) pode sair brilhante se houver um único ator ou técnico revoltado, insatisfeito, humilhado no trabalho.

Não muito mais tarde, e já numa outra peça (não tenho mais vontade de contar pormenores), mas agora no Teatro Viana do Castelo, com o diretor da altura e encenador, voltei a passar por algo profundamente humilhante. Depois e também não muito mais tarde, já no Teatro Nacional S. João numa peça que até me faz rir agora de tão elucidativa deste meio, "Na hora em que não sabíamos nada uns dos outros" de Peter Handke, outra prova de humilhação. Esta foi talvez a que mais dano me fez, pois aqui eu já era menos inocente. Ainda assim, não aprendi a proteger-me, nem a fazer “bem" as coisas. Sim, é disso que se trata, aprenderes a fazer bem e a safares-te bem. E se me perguntarem: - "Porque que não contas, agora que já começaste?!". Eu responderei - "O caralho que te foda!"

Eu, sem ter disso consciência, fui ganhando medo ao trabalho como atriz, afastando-me dos grupinhos de atores e amigos dos professores da escola de teatro, e grupinho dos ex. alunos e me enclausurando. Não foi de imediato, porque só mesmo com as inúmeras audições onde te obrigam a expor, é que me fui dando conta, do medo que comecei a ter a homens (encenadores, diretores). O embaraço de ser lésbica nesta profissão era terrível. (Já para não falar no fato de que ser assediada, "seduzida" por homens pode quase provocar nojo, quando não é a tua preferência). Hoje em dia não sei muito bem, mas na altura, como havia mais homens diretores hetero, era uma espécie de “handycap“ porque o corpo, o sexo são ferramentas de arremesso. Hoje acredito e sei que a homossexualidade pode ser perversa no meio também. Mas não me sinto parte do meio, se é que alguma vez me senti.

Já há muito que sinto que a atriz que há em mim é uma criança que só representa se se sentir confortável e amada. E por isso não a posso levar a muitas audições nem trabalhar em meios, nos quais a hipocrisia e este rio lamacento aconteça constantemente.

Faço vídeos J a peixinha dentro do seu aquário de proteção! A peixinha triste porque sabe que dificilmente voltará a ver o mar!

Oh mar salgado,

de quanto do teu sal,

são lágrimas de Portugal.

A ti:

Sei que partiste deste mundo há pouquíssimo tempo. Precisamente no dia que acabei de escrever este depoimento, recebi uma notificação no telemóvel. Foi um grande choque e obviamente resolvi não postar. Foi um golpe duro que só a mim diz respeito. Gostaria de ter escrito só coisas boas de ti ( estou segura que as tiveste - esta não). Que possamos ser úteis, eu e tu, nesta nossa estória a gerações próximas mais conscientes. Que ninguém venda a sua dignidade humana a troco de um medo imbecil, arcaico, pelo teatro? Que se fo** o teatro! Possamos dar o salto quântico para a reconstrução de uma humanidade sustentada numa sinfonia harmónica que nos eleva a alma, nos preenche de êxtase e dor. E que na sua simbiose se transforme em Amor.

Sei que o fizeste porque vocês (alguns de vós) nem se apercebem, é assim e pronto. Acredito que não tenha sido a única a ser submetida ao teu poder de macho. Não há vingança, nem ódio, apenas tristeza por não ter sido capaz de te dizer na altura que tudo podia ter sido diferente. Se tu tivesses tido consciência da minha fortaleza como mulher e atriz e eu da tua debilidade como homem e encenador. Tu partiste, eu ainda cá fico. No céu pediremos desculpa um ao outro.

Peace to your soul

Célia

Adenda: Peço de certa forma desculpa, a todos os homens que mais tarde depositei a minha raiva, em atitudes menos bonitas. 




... até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me dizer que com uma perna torta torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro. 


Denise Pereira, 37 anos


Antes de mais um agradecimento por todos os testemunhos que precederam o meu e que me deram coragem para escrever.

Eu nem sei bem por onde começar. Na maioria dos casos que vou partilhar aqui, as palavras não fazem jus ao sofrimento e às feridas que ficam, muitas vezes para sempre, e que nos atacam de forma inconsciente e nos bloqueiam nos actos. E pior que tudo, que nos impedem de sonhar. Já nem nos atrevemos a sonhar porque um dia nós chegámos onde queríamos chegar e alguém nos humilhou e ameaçou e agora esse medo está cravado em nós. É uma tatuagem química que não sai, que por vezes nem a terapia consegue resolver. Sabemos que não foi uma exceção, sabemos que é estrutural e por isso mais comum do que quisemos imaginar. E isso faz-nos ficar desconfiadas. Qualquer um pode ser um predador sexual. Não existem sinais visíveis que os identifiquem. Os níveis de cortisol ficam altos e o corpo não esquece a violência. Por isso nem sempre as palavras permitem comunicar o impacto dessas mesmas agressões.

Não me demoro mais. Tudo começa na infância. Sempre. Um horror ler vossas histórias e entender que quase desde o nascimento já somos sexualizadas. Não como agentes da nossa sexualidade, mas sempre como objectos e como potenciais vítimas de agressão e abuso. De que me recorde os assédios com recurso a piropos de linguagem vulgar e agressiva, extremamente sexualizantes começaram quando tinha 12 anos. Foi a idade em que comecei a curvar os ombros, a tentar esconder as mamas (que eram consideradas grandes), a usar roupas largas para que não nos sexualizassem. Mas sexualizam. Era o “fodia-te essa c*na toda” gritado de carros e por vezes mesmo gritado ao cruzar certos homens na rua, a caminho da escola. Homens com idade para serem meu pai ou avô. E a família, avisa sempre: não olhem, não respondam. Passamos a normalizar o abominável.

Mas antes disso, já na infância me recordo dos comentários inapropriados feitos por alguns adultos, como por exemplo o empregado de pastelaria que conhecia a minha mãe e que se metia comigo e dizia que era tão bonitinha, que quando fosse crescida ia ser sua namorada. Em que universo é que isto faz sentido? E as pessoas em volta riem nervosamente e seguem com a sua vida, e ainda fazem gracinhas sobre o facto de nós as meninas ficarmos envergonhadas com o sucedido e fugirmos. Fiquei sempre com a sensação de que eu tinha um problema e que era tímida. E não, o problema não era meu. O comentário era desadequado e continua a ser desadequado. Sempre foi. Não tentem suavizar. E isto segue-nos pela escola e pela vida fora. Ter vergonha de usar vestidos de alças num país que atinge 40 graus no verão, porque o professor pode olhar lascivamente, ou o funcionário da escola, o colega, o desconhecido, ou o polícia! Ninguém nos protege. Acusam-nos de sermos nós a provocar. O problema é nosso. Não são estes homens adultos nojentos produto de uma sociedade patriarcal que odeia mulheres, somos nós, as meninas. Eu ainda nem tinha dado um beijo ou iniciado a minha vida sexual e já havia homens a sexualizar-me. E é nesse contexto que nos vamos envergonhando e construindo uma vida sexual baseada na culpa, no desconhecimento do nosso corpo, e que nos exige quase sempre que sejamos objecto e não agentes da nossa própria sexualidade. Queremos esconder o nosso corpo. Não nos permitimos aceder à nossa sexualidade. Nós as meninas, as adolescentes e as mulheres temos direito a explorar a nossa sexualidade como queremos, ao nosso ritmo, sem termos de estar sempre na mira de potenciais predadores. Não explores a tua sexualidade senão eles têm o direito de te pegar. É esta a ideia com que ficamos.

Alongo-me, quero também expor factos. O assédio constante na escola, onde colegas rapazes nos apalpam, espreitam para debaixo da saia, e os adultos responsáveis, os profissionais de educação nada fazem. Ainda soltam um ralhete e depois comentam sobre a nossa roupa e o nosso comportamento. “Ah, pois, com aquelas mamas e aquela blusa”. Fica em suspenso (sempre) a ideia do “estava mesmo a pedi-las”.

Recordo também - e sobre este acontecimento nem consigo escrever muito porque ainda hoje sou assaltada por um cocktail de sentimentos entre a vergonha e o nojo - a minha primeira ida a um ginecologista. Eu devia ter uns 19 anos. Ele era um homem de 50 anos. Ainda hoje, quando me recordo dessa visita, me sinto violada. A forma como ele me examinou, o sorriso maroto porque eu ainda era "virgem" (o conceito-mor do patriarcado) Enfim, desculpem, nem consigo continuar. Durante muitos anos neguei-me a ir a um ginecologista. E ainda fiquei a pensar que eu é que tinha um problema, porque claro, para além de putas as mulheres podem também ser demasiado reprimidas e pudicas. E é um problema nosso, claro, não uma manifestação de stress pós traumático por sermos assediadas quase desde o momento em começamos a andar. O mesmo “profissional” de saúde ainda fez questão de me dizer que a pílula não engordava. Que as mulheres ganham peso depois de começar a tomar porque ficam super relaxadas, por já não correrem o risco de engravidar, e por isso começam a comer mais. Enfim, um nojo absoluto.

Passo à frente. Tenho 20 ou 21 anos. Vou fazer aulas de condução. Começo por dizer que ainda hoje não conduzo. Em grande parte por causa do que vou contar em seguida. Sempre me senti desconfortável com o meu instrutor. Nas primeiras aulas levava-me sempre a ver o pôr do sol nas estradas que estavam em construção, para que eu pudesse treinar à vontade. Pedia-me para estacionar e depois comentava a beleza do pôr do sol. Como nunca fez nenhum avanço eu culpava-me pelo mal estar. Dizia a mim mesma que estava tudo na minha cabeça. Até que um dia, no final de uma aula, já de noite, depois de eu estacionar em frente da escola ele começa a dizer-me que eu lhe recordava a ex-mulher. Que eu era tão gira e que ele sabia que eu me vestia assim para o provocar. Eu podia detalhar a roupa que levava, e explicar que não era nada sexual, mas isso já seria dar-lhe razão nos seus argumentos patriarcais. Não soube como reagir. Na altura tinha medo de contar aos meus pais, porque tinha medo que a culpa ainda recaísse sobre mim (tal é o descrédito que a sociedade patriarcal tem em nós e isso até nos afasta de procurar ajuda no amor do seio familiar ) e estupidamente desabafei com o meu namorado da altura (uma pessoa abusiva da pior espécie) que ao invés de me ajudar, desatou a rir e achou que a história era divertida. E ainda nos perguntam porque é que não pedimos ajuda… deixei de ir às aulas, a um certo momento pedi para trocar de instrutor na escola, mas eles apenas permitiam trocas se eu justificasse a causa do pedido, e como eu tive medo e não tinha provas (acho que todas vós conhecem bem estes momentos) acabei por nunca o fazer e seguir nas aulas com ele. Felizmente, nunca mais me assediou diretamente - talvez a escola lhe tenha falado do meu pedido - mas quando eu chumbei no exame de condução - ele gritou comigo o caminho todo. Ainda hoje luto com sentimentos de culpa por não ter apresentado uma queixa. Mas sei que isso é injusto, não apresentei porque me sentia sozinha. A sociedade patriarcal tem este efeito em nós, um sentimento de isolamento acompanhado da impunidade dos abusadores. Voltei a tentar tirar a carta. O instrutor era homem. Nunca me assediou. Mas eu fiz 3 aulas, sempre em pânico que voltasse a suceder, e a ansiedade nos dias anteriores às aulas era tão grande, que acabei por desistir.

Uns anos mais tarde num domingo ao fim da tarde, enquanto regressava de casa de uma amiga que morava numa perpendicular à Av. Almirante Reis, fui perseguida por um homem tarado. Não me apercebi logo porque estava ao telefone com um amigo. Apenas notei que alguém caminhava atrás de mim e que estava a falar constantemente. Assumi que falava também ao telefone, mas não era nada disso. Ele falava para mim. Dizia coisas obscenas sobre mim, e com o passar do tempo começou a explicitar de forma detalhada o que ia fazer comigo (obviamente tudo sexual e não consentido), ou numa ruela, ou num vão de escada. Nesse momento enfrentei-o e gritei-lhe que parasse. As poucas pessoas que estavam na mesma rua ignoraram o que estava a acontecer. Tive muito medo, ele continuou a seguir-me e a recitar o rol mais porco de piropos / ameaças sexuais que escutei até hoje. A certo momento entrei na única loja que estava aberta. Era uma loja minúscula. Não havia nada para ver, mas eu fiquei ali a fingir-me muito interessada nas poucas roupas expostas. Tremia como varas verdes. Não sabia se ele me esperava lá fora. Nem sei quanto tempo fiquei ali a olhar aquele expositor. A pessoa na loja não falava português, nem inglês, então não pude explicar ou pedir ajuda, mas deixou-me ficar ali, foi reconfortante ter aquela companhia/possível testemunha. A certo momento ganhei coragem para sair, corri para o Metro, mas durante todo o caminho estava em pânico, a olhar para todos os lados com medo que me seguisse. Durante anos não consegui caminhar sozinha na Almirante Reis, especialmente junto ao intendente. Mesmo acompanhada dava por mim a tremer.

Isto obviamente segue-nos para o trabalho. Durante uns meses trabalhei numa livraria de Lisboa e entendi o quão comum é o assédio quando se trabalha num espaço público. Clientes que nos perseguem na loja, funcionárias que têm de se esconder (no seu local de trabalho) porque um cliente lá vai para as ver e para as assediar, e que inclusivamente decorou o seu horário rotativo e por turnos só para que ela não possa escapar! Também me aconteceu, mais do que uma vez, mas contarei apenas as piores. Logo na minha 2a semana, apareceu um cliente, a princípio muito simpático, que me perguntou por livros sobre um determinado tópico. Com toda a simpatia o dirigi ao local onde podia encontrar os ditos livros, e quando eu já estava a regressar ao balcão, ele chamou-me e mostrou-me um livro. Quando olhei para o dito livro, era um livro erótico / burlesco com imagens de mulheres e homens em posições sugestivas, de conteúdo altamente sexual, e ele olhou para mim com aquele prazer de quem assedia uma mulher, especialmente uma que é claramente novata na profissão, que trabalha em atendimento e que ele assume pertencer a um estrato social mais baixo. O mesmo cliente voltou a chamar-me várias vezes para me deitar olhares lascivos, e no final do meu turno, quando estava a sair do local de trabalho na companhia de uma amiga, ele seguiu-nos e a certo momento bloqueando-nos o caminho, disse: “Estou a ficar no hotel X, se te apetecer é o quarto número…”. O NOJO. No dia seguinte contei ao meu chefe e aos colegas e felizmente a equipa combinou interceder sempre que ele aparecesse por lá, o que efetivamente aconteceu, passado um mês ou dois. Ainda nas minhas primeiras semanas, também se deu o caso de um cliente que apareceu na loja pelas 20h já bem bebido e procurando poesia sobre o “aborto”, e que regressou umas horas depois (ao fecho) a convidar-me para ir com ele para Castelo Branco. Eu estava nesse momento sozinha e disse-lhe que não (morrendo de medo que me esperasse na rua) e na sequência dessa nega, começou a gritar comigo, dizendo-me que as gajas de Lisboa eram todas umas putas sem educação. Apesar de ser óbvio o que estava a acontecer, nenhum segurança do dito estabelecimento comercial apareceu para me ajudar. Houve muitos momentos em que fui trabalhar com medo, especialmente nos turnos da noite, por ter de caminhar sozinha por uns 20min até casa, e ter medo de ser seguida.

Uma das piores situações que me aconteceu é a que descreverei agora. Mas por ser tão grave, e por sentir que teve um enorme impacto na minha vida profissional, nem consigo detalhar muito. Ainda me dói e ainda me impacta. Nas pesquisas para o meu doutoramento, tive de visitar vários arquivos. Em muitos deles só está um arquivista ou um funcionário. Muitos são em locais de pouca visibilidade nos edifícios. Muitos não trabalham em horário completo, mas apenas por marcação. Num desses arquivos aconteceu-me algo horrível. Eu tinha de passar lá os dias e estava sozinha com ele num lugar onde ninguém me escutaria, caso algo acontecesse. Notei que desde o primeiro dia ele se foi aproximando cada vez mais, um toque no ombro aqui e ali, o aparecer na sala onde eu fazia a leitura “só para ver como eu estava” e depois ficava a olhar para mim com olhar creepy, o toque na mão quando lhe entreguei a chave, as informações não pedidas sobre o seu horário e horas a que deixava o serviço. Todos nós sabemos reconhecer quando algo está para acontecer. E eu senti-o. Sabia que ele se preparava para fazer algo. Então deixei de aparecer. Só regressei na companhia de um colega homem, a quem ainda hoje agradeço o facto de ter conseguido completar a minha tese. No momento em que regressei acompanhada de um homem, ele começou a ser rude, bruto, nem olhou para o meu colega quando os apresentei. Aí soubemos que a minha intuição estava certa. Algo estava para acontecer. Na sequência de todos esses ataques de ansiedade que tive enquanto trabalhei lá sozinha, acabei por ter um episódio gravíssimo de refluxo gastroesofágico, que me levou às urgências hospitalares, e que transformou para sempre a minha saúde, sendo hoje algo crónico. E a pior consequência desse episódio: o medo que eu ganhei de visitar arquivos, a demora na escrita e entrega da minha tese (porque não ia aos arquivos e durante o processo de escrita era constantemente “triggered” quando lia a informação colhida nesse arquivo) e a desistência de seguir na carreira académica. Só recentemente me apercebi do impacto que esta história teve no meu desenvolvimento profissional. Acabei por defender a minha tese com imenso sucesso e esse exame foi louvado e amplamente elogiado por todos os que estavam presentes. Em seguida, foi-me oferecida uma bolsa de pós-doutoramento que recusei. Na altura pensei que era porque queria estar em Berlim. Mas foi só na segurança da distância, e na segurança de uma relação terapêutica, que eu comecei a entender o impacto que essa situação teve e tem ainda em mim e nessa decisão. Desse episódio ficou comigo um enorme medo de estar sozinha com um homem num gabinete ou num piso de uma instituição.

Há muitas histórias que ficam por contar. Mas deixo aqui algumas que me marcaram profundamente e que ainda impactam a forma como me movimento no mundo, que impactam a minha auto-imagem, a minha relação com o sexo masculino, as minhas escolhas profissionais, os sonhos que me permito sonhar.

Nenhuma de nós deveria ter de passar por isto. Mas agora estamos juntas. Que esta pequena onda vire tsunami e que derrube o machismo estrutural. Que se abram novos caminhos!

Damares Medina, 40 anos

Assédio é questão de poder


Assédio profissional. Das coisas que ouvimos caladas e optamos focar no essencial para não perdermos a corrida!

Assédio é questão de poder e, no campo profissional, ele nem sempre vem com conotação sexual... mas o objetivo é claro: reserva de mercado e exclusão da mulher do jogo concorrencial para que possa sobrar mais e confortavelmente para os homens.

Muitas vezes o assédio é simples violência de género.

Há mais de 10 anos ouvi, de um dos 4 homens que compunham a banca de qualificação da minha tese de doutorado: “nossa, vc tá grávida, não vai conseguir...

Quando estava no meu doutorado a minha esposa engravidou e eu quase não consegui...

"Coitadinha"...

“Igualdade no Judiciário, quem sabe, daqui a 300 anos”


PS - A minha resposta? A tese que eu não conseguiria terminar e o meu livro já foram citados pelo Supremo Tribunal Federal... o dele? Nunca...

Ana Gomes Ferreira, 65 anos

Nunca mais pedi ajuda em circunstâncias idênticas


Teria os meus 13/14 anos (sei porque ainda não usava óculos). 52 anos passados e sei o lugar exacto onde isto aconteceu .

Vinha do liceu Maria Amália a pé para casa. De bata e aos pulinhos pelo passeio quando sinto que alguém me sussura ao ouvido palavras que nem o sentido lhes conhecia. Apressei o passo, vejo do outro lado da rua um polícia atravesso a rua a correr e digo: aquele homem está a meter-se comigo. Respondeu-me: "com esses olhos o que é que estava à espera?"

Chorei. Nunca mais pedi ajuda em circunstâncias idênticas.




A culpa era minha?



 

Catarina Homem Marques, 37 anos

Não chega simplesmente dizer que o assédio acontece (...) é preciso mostrar, exibir a ferida


Nada disto é fácil, nem para quem conta nem para quem nos ouve (quem ouve de facto), mas às vezes parece que não chega simplesmente dizer que o assédio acontece a todas. É preciso mostrar, exibir a ferida. Aproveito então o impulso de outras e junto a minha voz ao que me parece ser uma corrente em crescendo. Faço-o ansiosa mas consciente, só com uma amostra, reduzida, no osso, sem entrar por horários nocturnos ou ir além dos anos da universidade, porque até sou uma rapariga simpática, como verão. Tenho mais histórias, temos todas, umas piores, outras melhores, não as costumo contar. É o que é, traumas bem arrumados, não estou a fazer fita, não estou alegre a partilhar isto. É só para que saibam do que andamos aqui a falar. E para que o movimento continue, não páre, não se envergonhe.


1. Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. A meio da tarde. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos.


2. Estava a caminho da escola depois de almoço e atravessei um pequeno parque de estacionamento para atalhar caminho. Ouvi pancadas numa janela ao meu lado. Parei, achei que era alguém conhecido, olhei na direcção do vidro da porta dianteira do carro. Lá dentro, um homem estava sentado ao volante, a masturbar-se. Sorriu para mim. Eu gelei. Ele continuou a rir cada vez mais. Eu fugi. Tinha 14 anos.


3. Apanhei muito cedo o comboio para Lisboa, Inter-cidades, tinha aula ainda essa tarde. Tinha sono, a viagem ia demorar, estava sozinha na minha fila de bancos. Ajeitei a mochila ao meu lado, encostei o corpo e fui adormecendo. Passado pouco tempo (quero acreditar nisso, preciso de acreditar nisso) acordei ligeiramente agitada, sem saber porquê. À medida que a consciência foi voltando, senti uma impressão no rabo, mais do que no rabo na verdade, se estamos a ser honestas. Olhei devagar. Vi uma mão que vinha do banco de trás, enfiada entre as costas dos meus dois bancos, a mexer-me. Levantei-me a tremer, olhei. Ele não ficou triste por ter sido apanhado. Ficou contente. Mandou-me um beijo. Eu agarrei nas minhas coisas todas e só queria saltar do comboio. Não dava. Tive de mudar de carruagem e procurar um lugar perto de uma família de três pessoas, a sorrir, para não estranharem a minha chegada repentina a meio do percurso. Tinha 18 anos.


4. Saí a correr da faculdade, estava atrasada para apanhar o comboio, para ir passar o fim-de-semana a casa. Peguei na mala e apanhei um táxi. Assim que o carro começou a andar, ele disse: «que bela mulher, é mesmo contigo que eu vou namorar.» Sorri, nervosa. E ele continuou a falar, a dizer tantas coisas que nem consigo transcrever, sempre a olhar pelo espelho, para mim, para a minha cara. Nunca senti conhecer tão mal Lisboa como nesse dia, deixei de reconhecer as ruas, não sabia onde estava mas acho que estava num sítio que eu conhecia. Não sei também se mantive o sorriso, não sei. Sei que de repente ele encostou, virou-se para trás, deu-me um papel e uma caneta e disse: «anota o teu número, isto não fica por aqui.» Tinha a minha mala ao colo. Pensei em fugir, não consegui. Anotei o número, troquei um algarismo, devolvi o papel. Sorri. Senti um vazio de medo pela possibilidade de ele testar o número, perceber que estava errado, pus discretamente a mão no manípulo da porta. Guardou o papel no bolso. Não me lembro do resto do caminho, mas sei que apanhei o comboio. Eu tinha 20 anos.




Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.

Ana Isabel - Dragana, 45 anos

Nunca maltraria alguém para me "satisfazer" ou me vingaria por não me darem o que quero


Abuso sexual... início na pré escolar. Estava numa escola que juntava no recreio crianças mais velhas da primária. Havia uma menina mentirosa e falsa que confrontei, ficou minha inimiga e foi dizer mentiras ao irmão mais velho. Fui perseguida nos recreios. Um dia, a "brincar aos médicos", vários meninos mais velhos me tocaram no pipi, lembro-me que gostei e de ter prazer, e de não entender porque os outros/outras não gostavam daquilo. No final fui gozada e humilhada por todos em grupo, para grande espanto meu, percebi que era suposto sentir vergonha mas nem sabia porquê... pois não tinha feito nada de mal.

Durante o período da escola primária. Os apalpões na escola, à força, o riso dos rapazes que se riam do que os outros faziam. Uma professora substituta à qual me queixei do que nos faziam, e que diz em plena sala de aula para todos ouvirem "vocês até gostam, são umas #utas. Sim, isto aconteceu.

Sempre me fui queixando e lutando contra, levando depois porrada de volta por isso. Eu gostava de rapazes e nenhum queria namorar comigo, porque eu era boa aluna e "malhava". Demorei muito tempo a perceber que não é suposto como mulher.

Abuso sexual, perseguição diária, desde a primária até aos 11 anos creio, altura em que tenho memória mais nítida, por um velho vizinho do prédio "amigo" do meu pai. Levava-me a passear à mata... um dia fui com o meu irmão mais novo que se revoltou com algo que não entendi o quê, devia estar a por me as mãos por baixo da saia, essa memoria tenho confusa... depois disto, ouvia-me a entrar no elevador e como morava no andar de baixo, entrava lá dentro. Apalpava-me, um dia voltei-me e apertou-me o pescoço e ameaçou fazer mal aos meus pais. Eu tinha medo de ir pelas escadas e que fosse pior. Todos os dias este terror antes de ir para a escola. Porque não falei aos meus pais? Um dia tentei, e fui gozada por me fazer de vítima pelo meu pai, por andar sempre a choramingar pela casa sem motivo. Não falei. E como também percebia pelo seu discurso machista "as mulheres queixam-se mas muitas vezes são elas que provocam". Ouvi isto aliás, muitos anos mais tarde, como resposta à minha difícil partilha "Está bem Ana, essa foi a tua história, mas muitas vezes as mulheres provocam". Fiquei esclarecida. Hoje como avô diz que não sabia o que faria se alguém fizesse mal à neta, pena que na minha altura me tivesse deixado por minha conta, porque estava mais preocupado em "vergar" a filha feminista.

Secundária. Ataques na rua por grupos de 20 a mim e a amigas. Onde ganhei a alcunha de miss canelada e passei a adorar botas da tropa. Não, não fomos violadas... estamo-nos a queixar do quê também? Os meninos estavam só a brincar. A brincar a atirar à minha amiga ao chão e sentar-se com a breguilha na cara dela a gozar, com mais uns 20 a rir porque isso é bué engraçado. Lembro-me de a ir defender com todas as forças, e de gritar para um do grupo da minha turma, que até gostava de mim, porque não fazia nada. baixou a cabeça. Mais tarde na escola só lhe sussurrei ao ouvido "cobarde".

Mais, sempre que me neguei a namorar com um destes atrasados mentais, fui chamada de "deves ter a mania", e gozada, humilhada na rua por TODOS, que era feia, etc. que nem para #oder servia. E porquê esta raiva? Porque os olhava na cara e não mostrava medo. Todos os dias chegava a casa a chorar, e todos os dias o meu pai gozava comigo. Um dia pedi lhe ajuda e ele respondeu que tinha de me aprender a defender sozinha. Com certeza papá. Sou psicóloga, mãe solteira e uma guerreira do caraças. "Ah Ana, devias ser mais feminina..."- se os homens e rapazes da altura e de agora, defendessem quem eu fui e às outras, ao invés de serem cobardes ou coniventes, talvez desse para o ser, mas por acaso escolhi sobreviver, um capricho meu.

O nojo dos homens das obras, que nos fazem sentir violadas e em perigo quando nem temos ainda idade para perceber aquele discurso. quando ainda nem demos um beijo, como se nos estivessem a preparar sabe Deus para o quê... alguns amigos dos pais que de repente crescemos e deixamos de ser as meninas, e falam de nós olhando de cima a baixo "já ia", com comentários nojentos e piadinhas como se nós não entendêssemos a conivência dos nossos pais. Os próprios pais que mesmo não sendo "porcos" também começam a elogiar as nossas amigas, como se de repente fossemos todas carga, produto. Um nojo muito grande, um desespero muito grande, o não saber para onde fugir porque NÃO HÁ LUGARES SEGUROS para muitas de nós. Autocarros, metros, os roçanços nem falo, a vergonha de não saber se trás de nós está um pau quente ou outra coisa qualquer... só de me lembrar arrepio-me e sinto vontade de chorar. Com pena da menina que sabe que se levantar a voz vai ser castigada pelo público, porque a culpa é sempre "nossa" e eles saem sempre impunes. A vergonha de não ter gritado. O medo de pedir ajuda e de ser traída por quem me deveria ajudar, como tantas vezes aconteceu...

Aos 13/14 ia perdendo os três com um homem da minha família, com consentimento meu, porque me tratava como pessoa e me ouvia desde que eu era miúda. Olhando para trás, estava a preparar terreno para quando eu crescesse. O entrar-me na casa da banho quando eu estava a fazer chichi, sem querer, deveria ter-me chamado a atenção, mas ficava sempre na dúvida... ele era mais velho e bastante atraente.. sim, nem todos os abusadores são horríveis... há de tudo. Demorei muito tempo a partilhar, pois calculei que tratada como porcaria como já era pela família, cambada de bulys machistas, o mais provável era ainda acharem que estava a mentir ou que obviamente, o tinha provocado.

Mais tarde como jovem adulta, também ser perseguida na rua e atacada por trás, por homens que saltam sabe Deus de onde, a dizer "vocês gostam", houve um que me safei porque o convenci que tinha amigos atrás de mim a chegar que o matariam.  Amigos... tirando algumas excepções de homens que sei que me amaram e tiveram compaixão pela minha história, esses "amigos" são na sua maioria os machistas que acham que falar das mulheres como se fossem objectos é engraçado. Confundem desejo sexual com abusar do outro. Desejo tenho eu e nunca maltraria alguém para me "satisfazer" ou me vingaria por não me darem o que quero. Isso é abuso. Ter de explicar isto é agonizante.





... a menina que sabe que se levantar a voz vai ser castigada pelo público, porque a culpa é sempre nossa.

Sónia Oliveira, 48 anos

Mas quase sempre o que imperava era a total indiferença


Devia ter uns 3, 4 anos. Brincava nas escadas do meu prédio quando um homem entrou para o patamar da entrada e se sentou com as suas coisas. Lembro-me de um vulto corpulento e coisas, muitas coisas, sacos, um casaco grosso apesar do calor. Tinha também uma caixa com cãezinhos bebés. Subi o lanço de escadas até ao patamar para ver aquela figura estranha de perto. O homem sorriu e mostrou-me a caixa com os cãezinhos. Eram lindos. Ou seria apenas um? Não me lembro bem. O pêlo do cão era da cor do vulto: castanho russo, um grande bigode. Baixei-me para fazer festas ao cão dentro da caixa, com o sorriso do homem a incentivar-me. Sempre a sorrir, o homem começou a mexer-me nas cuequinhas. Eu estava agachada, era Verão, tinha um vestido com lacinhos e totós. O tempo parou com a minha incredulidade, a minha confusão, a minha incapacidade para desvendar o significado daquele gesto que me incomodava, apesar do sorriso aberto. Queria chamar a minha mãe, mas tinha medo, um medo que não sabia de onde vinha, nem porquê. Não consegui levantar-me. Mas a minha mãe ouviu-me na mesma. Apareceu aos gritos e pôs o homem na rua enquanto o descompunha. Lembro-me apenas de uma amálgama de som e dos braços da minha mãe a pegar em mim. E lembro-me das cuequinhas que trazia nesse dia, com flores pequeninas.

Devia ter 8, 9 anos. A minha mãe estava na casa da minha tia e eu andava a brincar noutra praceta. Quando me dirigi a casa da minha tia, passei pela empena cega de um prédio que havia formado um corredor estreito com o enorme camião estacionado ao lado do passeio. Ao fundo um homem caminhava em direcção contrária. Vestia de escuro, mas tinha uma mancha clara, que me pareceu estranha, na zona das calças. Uns passos à frente percebi que tinha posto o sexo de fora. Olhou-me fixamente, sem parar, muito sério. Senti-me encurralada, aterrorizada, o camião parecia não ter fim. Só consegui correr quando saí dali.

Devia ter 10, 11 anos. Brincava na varanda, terceiro andar. Ao lado do lavadouro havia uma casinha, da EDP, creio. Atrás da casinha havia canaviais e uma horta. Estava um homem atrás da casinha a fazer qualquer coisa. Senti curiosidade porque demorava. Mexia muito o braço, mas estava virado para a parede, não trabalhava na horta. O homem afastou-se e olhou para mim a rir. Masturbava-se, mas na altura eu não sabia o que fazia. Não percebi por que raio estava ali com o sexo na mão a rir, mas senti muito medo. Corri para dentro e fechei o estore. Fiquei às escuras na sala a tremer.

Tinha 10, 11 anos quando, no ciclo preparatório, os rapazes descobriram a arte de apalpar. Nós protestávamos, defendíamo-nos, berrávamos e chamávamos nomes, mas eles só riam e tentavam fazer pior. Comigo os apalpões acabaram quando dei um estalo ao António Miguel que o deixou a sangrar do nariz, com a promessa de que levaria mais se repetisse a graça.

Isto passou-se entre os 18 e os 21 anos, a caminho da faculdade. Nos anos 90 o comboios da linha de Sintra viajavam apinhados, com pessoas penduradas nas portas e as gaiolas tão cheias que quase entrávamos sem tocar no chão, comprimidos pelos outros corpos aflitos com a hora, receosos de não conseguir entrar. Todos os dias. Todos os dias algum homem tentava esfregar-se, roçar-se, apalpar. Fiquei exímia em distribuir ostensivas cotoveladas, pisadelas e caneladas com expressão seráfica. O chapéu de chuva tornou-se um acessório providencial. Por vezes recebia um sorriso cúmplice de alguma mulher em frente a mim que se apercebera da situação, mas quase sempre o que imperava era a total indiferença.




Fiquei exímia em distribuir ostensivas cotoveladas, pisadelas e caneladas com expressão seráfica.

Ana Maria Monteiro, 63 anos

Foi de um delegado sindical muito querido e apoiado, logo insuspeito

Não levem estas coisas do assédio sexual para uma causa de esquerda e direita. Eu posso afirmar que sim, fui vítima de vários, quase todos de superiores hierárquicos mas o mais grave, gravíssimo e, tendo em conta as circunstâncias, estou em crer que os outros não se atreveriam, foi de um delegado sindical muito querido e apoiado, logo insuspeito, mas um verdadeiro filho da puta. (Aqui teria 17 anos.)




... não é uma causa de esquerda ou direita.

Sílvia Roque, 41 anos

Sei por que luto. Sei porque luto.





Nas últimas semanas, tenho pensado bastante nas várias agressões que sofri enquanto adulta ou naquelas que sofrerem (algumas até bem mais graves) várias amigas minhas.

Já fui ameaçada por um desconhecido com o qual não desejava conversar, a quem tinha dado as informações (absurdas) que me pediu e a quem educadamente informei que não tinha intenção de continuar a conversa. Seguem-se insultos, a seguir pega numa pedra enorme, do tamanho de um tijolo, e começa a ameaçar acertar-me com a pedra, volto para dentro carro. Revejo-me naqueles minutos de desespero e humilhação a levantar e baixar a cabeça, refugiada dentro do meu carro, sem saber se ia levar com o paralelo na cabeça, se tudo acabava ali. Se devia ligar o carro ou esperar que se fosse embora. Acabou por ir. Depois, as inúmeras voltas que dei a tremer sem saber quando poderia estacionar e entrar em casa. A minha irmã e o namorado à minha espera, à porta, para poder regressar. O pânico de voltar a estacionar perto de casa que durou, durou, já não sei quando acabou. Isto foi em Coimbra.

Um dia descia descansadamente a Avenida da Liberdade e de repente está um homem, jovem, muito bem vestido com as mãos nas minhas mamas. Tento bater-lhe, ele foge, olho em volta: ninguém, não está ninguém, nem me posso queixar à polícia. Volto a sentir a humilhação, a raiva. O que posso fazer? Cortar as mamas? Depois de andar tantos anos a esconde-los de olhares fixos e comentários humilhantes, mesmo da parte de pessoas próximas, se calhar só mesmo tirando tudo, pode ser que ninguém note que sou mulher e tenho mamas. Sim, pensei isto várias vezes, já resolvi tudo comigo própria, mas chegar a pensar nisto parece-me relativamente grave.

Já fui atacada, em El Salvador, onde fazia investigação para o meu doutoramento, por um homem, um ex-guerrilheiro e membro do FMLN, um homem que entrevistei e que me ajudou a chegar a algumas entrevistas importantes, outras menos, ossos do ofício. Talvez tenha achado que estava na hora de lhe pagar a ajuda. Nunca me senti tão em perigo como dentro daquele carro, o dele, a defender-me e a tentar parar a sua insistência. E olhem que eu tive que fugir de um motim numa prisão, e olhem que estive dentro de uma cela fechada com trinta membros de um importante gang. A violência vem quando e de onde menos esperamos.

Já fui assediada por um alto funcionário da Polícia de Ordem Pública em Bissau. Achou por bem oferecer os seus préstimos sexuais enquanto eu estava fora de casa e em resposta aos emails onde lhe solicitava dados sobre a criminalidade. Ignorei. Nojo.

Com 22 anos, fui escrever a minha dissertação de licenciatura (ainda se faziam essas coisas, sim) em Madrid, num centro de investigação para a paz. Fui convidada para estar presente num encontro internacional sobre educação popular em Vitória-Gasteiz. Tudo muito maravilhoso para quem queria construir a paz no mundo e tal, discursos feministas e tal. Durante o dia. Á noite tudo se transformava no escuro embalado pelas canções de protesto e de intervenção. Fui lá que conheci Sílvio Rodriguez, isso foi bom. Mas nunca esquecerei a noite em que fui assediada por três homens diferentes, chegando um deles a perseguir-me até ao dormitório, insistindo para que entrasse no cubículo dele. Eu tinha 22 anos, era a pessoa mais nova daquele encontro. Os três homens tinham nacionalidades diferentes, by the way. No dia seguinte nenhum pedido de desculpa, nem me olhavam nos olhos. Era só uma miúda, não interessava o que eu pudesse dizer, só interessava que lá estivesse à noite para agarrar.

Tudo isto e muito mais (que o relato já vai longo) na minha vida adulta.

No entanto, nos últimos dias, passo os olhos pelos inúmeros testemunhos sobre assédio sexual que se vão libertando. Cada vez mais fotos de meninas, crianças, estas mulheres quando foram crianças, obrigadas a crescer muito depressa. É logo aí que tudo começa. Partilho com elas o facto de ter passado por várias destas experiências: ver exibicionistas, comentários de homens mais velhos a quem toda a gente fica indiferente, os apalpões da escola acompanhado de insultos porque, claro, tu é que te deixas apalpar ou simplesmente existes, etc etc etc. A nossa vida é este etc.

E é ao ler estes relatos que volto a uma das primeiras memórias de infância, se não mesmo a primeira. Teria uns 4 anos. Um grupo de meninos, da mesma idade, agarra a minha melhor amiga, na creche, deita-a no chão e baixa-lhe as cuecas. Ali está o pipi para toda a gente analisar. Ela grita, esperneia, chora. Todos à volta riem. Eu congelei. A memória é tramada, desfocada. O que é que fiz mesmo? Disse para pararem? Chamei adultas? Não disse nada? Será que em algum momento me ri para não destoar? Não sei exatamente o que fiz, e até hoje vivo com essa incerteza e essa mágoa. Sei que essa imagem nunca vai sair da minha cabeça.

E sei, sobretudo, que esta não devia ser a primeira memória da infância de ninguém. Sei que não quero mais crianças a fazer isto e a sofrer isto.



... esta não devia ser a primeira memória da infância de ninguém. 

Claúdia Martins

Os meus pais (...) não acreditaram em mim.


Tinha 14 anos e fui com o meu ex cunhado, marido da minha irmã, na época, buscar umas coisas de uma festa que os meus pais tinham dado. De repente, o meu cunhado agarrou-me e beijou-me na boca. Eu empurrei-o e perguntei-lhe se não tinha vergonha.

Durante vários dias senti-me muito mal e não conseguia dormir. Não disse nada a ninguém até que não aguentei e contei às minhas primas. Elas falaram com a minha tia, irmã da minha mãe e casada com um irmão do meu pai. A minha tia disse logo para falar com os meus pais.

Foi horrível! Os meus pais não quiseram saber e não acreditaram em mim.

Maria Trigoso, 74 anos

Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos.


Tinha 17 anos quando fui a um dentista, dos seus 40 anos, que tratava uma tia minha, e que partilhava consultório, no centro de lisboa, com um outro médico cunhado de uns outros tios.

Não era portanto uma desconhecida. E ainda que fosse?! Mas, o não ser ainda reforça a impunidade de que a criatura se achava imbuída.

Tudo começou por umas festas no pescoço que estranhei mas sobre cujo significado hesitei.

Daí passou uma mão a entrar pelo decote da minha blusa e, rapidamente, a acariciar-me (palavra absurda aqui...) o peito. De um lado. Do outro.

Confesso que não sei se isto foi antes ou depois de me tratar o dente. Nem sequer recordo, à distância de mais de 50 anos, se ele me chegou a tratar o dente.

Só ficou nítido o frio gelado daquela inesperada invasão da minha intimidade.

Mas, o que recordo melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta submissão. Como explicá-la?

Lembro me de ter ficado paralisada, de aflição e estupefacção, incapaz de saber como reagir.

Quando sai do consultório e fui ter com o meu namorado (18 anos) desabei num choro descontrolado e contei a história para a qual não tinha nome nem explicação.

O meu namorado não hesitou um segundo e mal me sentiu mais tranquila, decretou “temos de lá voltar e já”.

Não perguntei para quê, embora talvez sentisse na raiva que nele sentia, medo pelo que poderia acontecer.

Fomos, comigo cheia de medo e de vergonha. Teria preferido não ir creio, não sei. Continuava a minha estranha passividade.

A cena no consultório foi brutal. Na sala de espera, com bastantes pessoas, o dentista apareceu a “pedido” da empregada, a quem o meu namorado exigiu, em tom violento e peremptório, que chamasse o doutor cá fora.

Era um tipo pequeno e franzino que eu de repente vejo no ar içado pelos colarinhos pelas mãos do meu namorado.

Não me lembro de uma palavra dos insultos que a criatura ouviu num silêncio total e numa palidez mortal.

Nem me lembro de como acabou a cena, de como voltámos para casa, de como a revivi nos tempos seguintes. Creio a apaguei da consciência deixando-a talvez apodrecer algures no inconsciente.

O que hoje me parece importante ressaltar é, por um lado, a forma como a feminina passividade permitiu, tanto a agressão do predador como o salvamento pelo defensor.

Nos dois episódios do filme eu fui um mero objecto - de um macho mau e de um macho bom. Não tive qualquer agência sobre mim ou sobre o mundo.

Tal como eu cresci também esse meu namorado terá crescido não lhe ocorrendo, uns anos depois, “arriscar a pele” para salvar uma dama.

Quer por ter percebido que não era dono delas, nem seu protector, quer por elas lhe merecerem o respeito devido a pessoas autónomas.

Não tenho dúvida que, se a história, por absurdo, se passasse hoje, ele me teria dito para ir à polícia, ou à ordem dos médicos, fazer queixa da criatura.

Mas, e mesmo correndo o risco de me contradizer, pergunto me se a eficácia, em termos de penalizar o agressor, não teria sido menor.

A verdade é que, por via do seu companheiro de consultório, vim a saber que depois da cena pública, a criatura adoeceu e acabou por fechar a prática. Pelo menos naquele local.

O segundo aspecto a salientar é a importância absoluta da educação das raparigas sobre o que é e como funciona a sociedade patriarcal. Qual o seu lugar nela. O que é a masculinidade tóxica. Tivesse a minha educação sido outra, tivessem sido outros os modelos de mulher com quem convivi, fosse outra a escola, outra a família, e eu teria seria (a) outra. Que sou hoje. Mas aprendida é construída à sua própria custa.

Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos assente na hierarquia material e psicológica dos sexos. Saudar nelas a rebeldia e não a submissão, orgulharmo-nos com o seu papel de guerrilheiras pela emancipação e não com o seu estatuto de vítimas.



... o que recordo melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta submissão. Como explicá-la?