#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

Maria Trigoso, 74 anos

Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos.


Tinha 17 anos quando fui a um dentista, dos seus 40 anos, que tratava uma tia minha, e que partilhava consultório, no centro de lisboa, com um outro médico cunhado de uns outros tios.

Não era portanto uma desconhecida. E ainda que fosse?! Mas, o não ser ainda reforça a impunidade de que a criatura se achava imbuída.

Tudo começou por umas festas no pescoço que estranhei mas sobre cujo significado hesitei.

Daí passou uma mão a entrar pelo decote da minha blusa e, rapidamente, a acariciar-me (palavra absurda aqui...) o peito. De um lado. Do outro.

Confesso que não sei se isto foi antes ou depois de me tratar o dente. Nem sequer recordo, à distância de mais de 50 anos, se ele me chegou a tratar o dente.

Só ficou nítido o frio gelado daquela inesperada invasão da minha intimidade.

Mas, o que recordo melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta submissão. Como explicá-la?

Lembro me de ter ficado paralisada, de aflição e estupefacção, incapaz de saber como reagir.

Quando sai do consultório e fui ter com o meu namorado (18 anos) desabei num choro descontrolado e contei a história para a qual não tinha nome nem explicação.

O meu namorado não hesitou um segundo e mal me sentiu mais tranquila, decretou “temos de lá voltar e já”.

Não perguntei para quê, embora talvez sentisse na raiva que nele sentia, medo pelo que poderia acontecer.

Fomos, comigo cheia de medo e de vergonha. Teria preferido não ir creio, não sei. Continuava a minha estranha passividade.

A cena no consultório foi brutal. Na sala de espera, com bastantes pessoas, o dentista apareceu a “pedido” da empregada, a quem o meu namorado exigiu, em tom violento e peremptório, que chamasse o doutor cá fora.

Era um tipo pequeno e franzino que eu de repente vejo no ar içado pelos colarinhos pelas mãos do meu namorado.

Não me lembro de uma palavra dos insultos que a criatura ouviu num silêncio total e numa palidez mortal.

Nem me lembro de como acabou a cena, de como voltámos para casa, de como a revivi nos tempos seguintes. Creio a apaguei da consciência deixando-a talvez apodrecer algures no inconsciente.

O que hoje me parece importante ressaltar é, por um lado, a forma como a feminina passividade permitiu, tanto a agressão do predador como o salvamento pelo defensor.

Nos dois episódios do filme eu fui um mero objecto - de um macho mau e de um macho bom. Não tive qualquer agência sobre mim ou sobre o mundo.

Tal como eu cresci também esse meu namorado terá crescido não lhe ocorrendo, uns anos depois, “arriscar a pele” para salvar uma dama.

Quer por ter percebido que não era dono delas, nem seu protector, quer por elas lhe merecerem o respeito devido a pessoas autónomas.

Não tenho dúvida que, se a história, por absurdo, se passasse hoje, ele me teria dito para ir à polícia, ou à ordem dos médicos, fazer queixa da criatura.

Mas, e mesmo correndo o risco de me contradizer, pergunto me se a eficácia, em termos de penalizar o agressor, não teria sido menor.

A verdade é que, por via do seu companheiro de consultório, vim a saber que depois da cena pública, a criatura adoeceu e acabou por fechar a prática. Pelo menos naquele local.

O segundo aspecto a salientar é a importância absoluta da educação das raparigas sobre o que é e como funciona a sociedade patriarcal. Qual o seu lugar nela. O que é a masculinidade tóxica. Tivesse a minha educação sido outra, tivessem sido outros os modelos de mulher com quem convivi, fosse outra a escola, outra a família, e eu teria seria (a) outra. Que sou hoje. Mas aprendida é construída à sua própria custa.

Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos assente na hierarquia material e psicológica dos sexos. Saudar nelas a rebeldia e não a submissão, orgulharmo-nos com o seu papel de guerrilheiras pela emancipação e não com o seu estatuto de vítimas.



... o que recordo melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta submissão. Como explicá-la? 

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