Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos.
Tinha 17 anos quando fui a um dentista, dos seus 40 anos, que tratava uma tia minha, e que partilhava consultório, no centro de lisboa, com um outro médico cunhado de uns outros tios.
Não era portanto uma
desconhecida. E ainda que fosse?! Mas, o não ser ainda reforça a impunidade de
que a criatura se achava imbuída.
Tudo começou por umas
festas no pescoço que estranhei mas sobre cujo significado hesitei.
Daí passou uma mão a
entrar pelo decote da minha blusa e, rapidamente, a acariciar-me (palavra
absurda aqui...) o peito. De um lado. Do outro.
Confesso que não sei se
isto foi antes ou depois de me tratar o dente. Nem sequer recordo, à distância
de mais de 50 anos, se ele me chegou a tratar o dente.
Só ficou nítido o frio
gelado daquela inesperada invasão da minha intimidade.
Mas, o que recordo
melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta
submissão. Como explicá-la?
Lembro me de ter ficado
paralisada, de aflição e estupefacção, incapaz de saber como reagir.
Quando sai do
consultório e fui ter com o meu namorado (18 anos) desabei num choro
descontrolado e contei a história para a qual não tinha nome nem explicação.
O meu namorado não
hesitou um segundo e mal me sentiu mais tranquila, decretou “temos de lá voltar
e já”.
Não perguntei para quê,
embora talvez sentisse na raiva que nele sentia, medo pelo que poderia
acontecer.
Fomos, comigo cheia de
medo e de vergonha. Teria preferido não ir creio, não sei. Continuava a minha
estranha passividade.
A cena no consultório
foi brutal. Na sala de espera, com bastantes pessoas, o dentista apareceu a
“pedido” da empregada, a quem o meu namorado exigiu, em tom violento e
peremptório, que chamasse o doutor cá fora.
Era um tipo pequeno e
franzino que eu de repente vejo no ar içado pelos colarinhos pelas mãos do meu
namorado.
Não me lembro de uma
palavra dos insultos que a criatura ouviu num silêncio total e numa palidez
mortal.
Nem me lembro de como
acabou a cena, de como voltámos para casa, de como a revivi nos tempos
seguintes. Creio a apaguei da consciência deixando-a talvez apodrecer algures
no inconsciente.
O que hoje me parece
importante ressaltar é, por um lado, a forma como a feminina passividade
permitiu, tanto a agressão do predador como o salvamento pelo defensor.
Nos dois episódios do
filme eu fui um mero objecto - de um macho mau e de um macho bom. Não tive
qualquer agência sobre mim ou sobre o mundo.
Tal como eu cresci
também esse meu namorado terá crescido não lhe ocorrendo, uns anos depois,
“arriscar a pele” para salvar uma dama.
Quer por ter percebido
que não era dono delas, nem seu protector, quer por elas lhe merecerem o
respeito devido a pessoas autónomas.
Não tenho dúvida que,
se a história, por absurdo, se passasse hoje, ele me teria dito para ir à
polícia, ou à ordem dos médicos, fazer queixa da criatura.
Mas, e mesmo correndo o
risco de me contradizer, pergunto me se a eficácia, em termos de penalizar o
agressor, não teria sido menor.
A verdade é que, por
via do seu companheiro de consultório, vim a saber que depois da cena pública,
a criatura adoeceu e acabou por fechar a prática. Pelo menos naquele local.
O segundo aspecto a
salientar é a importância absoluta da educação das raparigas sobre o que é e
como funciona a sociedade patriarcal. Qual o seu lugar nela. O que é a
masculinidade tóxica. Tivesse a minha educação sido outra, tivessem sido outros
os modelos de mulher com quem convivi, fosse outra a escola, outra a família, e
eu teria seria (a) outra. Que sou hoje. Mas aprendida é construída à sua
própria custa.
Temos a obrigação de incentivar filhas e netas a abrir os olhos para a sociedade em que vivemos assente na hierarquia material e psicológica dos sexos. Saudar nelas a rebeldia e não a submissão, orgulharmo-nos com o seu papel de guerrilheiras pela emancipação e não com o seu estatuto de vítimas.
... o que recordo melhor, e é por isso que conto aqui a história, é a minha reacção de absoluta submissão. Como explicá-la?
Sem comentários:
Enviar um comentário
Se pretende deixar o seu testemunho envie por favor para este email: resgatessomosmuitas@hotmail.com