#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

ITA, 44 anos

Trinta anos a apanhar com isto.


1. A PRIMEIRA VEZ que tive de fugir de um homem para não ser violada, foi com onze anos. Eu vinha da escola a caminho de casa, só tinha de descer a rua, coisa que durava uns dez ou quinze minutos. Era inverno e às cinco da tarde já era de noite. Eu descia a rua com a minha mochila às costas quando senti uns passos atrás de mim. Não os passos normais de quem anda na rua e eventualmente passa à frente, mas uns passos sincronizados com os meus, mais rápidos ou mais lentos conforme o meu próprio andamento. Uns passos fortes. Uns passos de homem.


Quando entendi que estava a ser perseguida, comecei a caminhar mais depressa. Os passos também. Senti o corpo do homem, um cheiro de pele e um hálito quente a substituir os passos. Comecei a correr com quantas forças tinha, o vulto atrás de mim prestes a agarrar-me, quando por divina providência vi uma porta aberta e entrei. Era um cafézinho de bairro, com espaço para três mesas e um balcão. Entrei esbaforida e fiquei parada a olhar para a rua. A porta era de vidro, lá fora estava escuro e eu não conseguia ver se o homem ainda lá estava ou não. O dono do café perguntou, quer alguma coisa menina, e eu sem me mexer. Não conseguia dizer nada, as palavras tinham-se sumido, os movimentos também. Lembro-me de ouvir muitas vezes quer alguma coisa, o gato comeu-lhe a língua, e depois risinhos, talvez alguma piadinha. Não sei quanto tempo fiquei ali parada no meio do café a olhar para a porta. Ao fim de uma eternidade, saí. Olhei para todo o lado, não via nenhum homem sozinho. Uma família ali, um grupo de crianças além. Voltei ao caminho de casa, mas agora todas os carros e todas as sombras pareciam esconder potencialmente um violador à minha espera. Até hoje.

Eu usava óculos e duas tranças com um laço, uma de cada lado.

Eu tinha onze anos.

(O cafezinho da história ainda existe, está igual. Passo por ele todos os dias quando vou levar os meus filhos à escola. Não há dia que não me recorde.)

2. AOS DOZE ANOS os meus pais tiveram a ideia de fazer umas férias de carro pela Espanha e até à França. A ideia inicial era ir até Itália, mas só chegámos até ao Mónaco. Visitaríamos ruínas romanas, cidades e museus, dormiríamos em parques de campismo e tomaríamos muitos banhos de mar e de piscina. Parecia perfeito. Arrancámos, a viagem estava a ser esplêndida, até que numa aldeola perto de Madrid, o pobre Renault 16, que já tinha sido comprado em segunda mão, deu o estertor final e tivemos de o deixar na oficina e seguir viagem de comboio. Estávamos os quatro num camarote só para nós, daqueles com dois bancos e uma janela, eu e a minha irmã nunca tínhamos visto nada assim e achávamos o máximo. Às tantas, o cansaço da viagem fez-se notar e adormecemos todos. Eu estava sentada num banco com a minha mãe, o meu pai estava no banco à nossa frente com a minha irmã. Todos dormitávamos. Eu estava encostada à minha mãe e tinha as pernas estendidas em direcção à porta. Talvez não fossem estendidas mas sim flectidas, e talvez se vissem as minhas cuecas, porque o que é certo é que a dado momento olhei para a porta e vi um homem com as calças para baixo a masturbar-se a olhar para mim. Fiquei aterrorizada. Eu não entendia por que razão o homem estava a esfregar o pénis com força e a mostrar-mo enquanto olhava para mim. Eu não sabia o que aquilo era, mas sabia que era errado, era uma coisa que eu não queria ver. A minha mãe, o meu pai e a minha irmã, todos dormiam. Eu sentia-me horrível por estar ali, por ter aquele homem ali a masturbar-se à minha frente, e envergonhadíssima e culpada por aquilo estar a acontecer. Não sabia o que fazer. Encolhi-me toda, agarrei-me à minha mãe, tentei puxar a saia para baixo o mais que consegui, virei-me para o lado e fiquei ali a chorar. Não sei quanto tempo passou. Quando finalmente alguém acordou, eu voltei a olhar para a porta: o homem não estava lá. A minha família discutia alegremente o novo destino das férias, de repente senti uma raiva enorme a crescer e quis apanhar o homem, mostrá-lo aos meus pais, envergonhá-lo, dizer o que tinha acontecido. Levantei-me em direcção à porta, abri-a, espreitei para fora, à direita e à esquerda. O homem já se tinha ido embora. A raiva não foi maior do que o medo, e a ideia de ir para o corredor procurá-lo e ser levada à força para um dos camarotes fez-me regressar para dentro do meu. A viagem continuou, saímos na próxima cidade e fomos ao próximo museu.

Eu tinha doze anos.

3. MAIS OU MENOS por essa altura, comecei a andar de transportes públicos sozinha. Eu tinha começado a frequentar uma escola de música que ficava no outro lado da cidade, e para lá chegar tinha de apanhar o autocarro, ou então o autocarro e o metro. Foi aí que soube o que era ser criança e ser apalpada invariavelmente de todas as vezes. Não havia uma única viagem em que isso não acontecesse. Não ter um lugar sentada era um martírio. Há homens, a maior parte de meia idade, que têm um olhar predador e detectam logo, num autocarro ou numa carruagem de metro, onde está a vítima que nunca vai levantar a voz porque tem vergonha. Eu era essa vítima. Senti inúmeras mãos no rabo, no peito, na vagina, pénis erectos a roçarem-se no meu corpo, uma vez cheguei mesmo a sentir uma mão por baixo das minhas cuecas. De todas as vezes, assim que detectava o contacto físico mudava de posição, virava-me para o outro lado, dava um passo noutra direcção naquele local apinhado. Logo voltava outra mão, de outro lugar. Com o passar do tempo, desenvolvi capacidade de resposta, passei a falar alto e a denunciar os abusadores, obrigá-los a parar. Nunca, nunca em vez alguma alguém veio em meu socorro nem mostrou qualquer tipo de solidariedade. Era assim, o abuso era visto por toda a gente como uma inevitabilidade.

Foi nessa altura que encontrei o método infalível para me proteger dos apalpões: passei a levar sempre comigo uma mochila carregada de livros. A mochila às costas impede o contacto imediato com o corpo, e se eu sentisse algum avanço bastava virar-me ligeiramente para um lado, que logo a mochila dava um safanão à pessoa e me protegia novamente. Desde então, nunca mais consegui sair de casa sem levar pelo menos um livro. Os meus amigos julgam que é por ser muito culta e gostar muito de ler. Será o gosto pela leitura, mas é sobretudo o hábito que me ficou desde então.

Eu tinha doze anos, e treze, e catorze, e quinze.

4. AOS TREZE ANOS, estava eu em plena luz do dia num autocarro, à hora do almoço, sentada num dos bancos de trás, quando um velho se sentou ao meu lado. Eu tinha uma saia verde, curta, de fazenda. O velho começou a falar comigo e a perguntar-me se eu tinha namorado. Eu envergonhadíssima, sem saber o que dizer devo ter virado a cara e feito um sorriso encavacado. O velho pôs a mão na minha perna, primeiro no joelho, e foi subindo enquanto me dizia que já era tempo de eu ir pensando nessas coisas, que eu já estava uma mulher, que era altura de pensar em namorados e que isso não tinha nada de mal, era uma coisa boa. A mão subia pela minha coxa. As lágrimas desciam-me pela cara. Eu aflita, envergonhada, com raiva, impotente perante aquilo. Ao fim de segundos que me pareceram eternidades, levantei-me de rompante e fui a chorar lágrimas de raiva para ao pé da porta. Saí mal as portas se abriram. O autocarro estava cheio. Pelo menos umas vinte pessoas à minha volta estavam a ver aquilo. Ninguém fez nada, rigorosamente nada.

Eu tinha treze anos.

(Hoje, tenho uma sensibilidade especial para procurar crianças e adolescentes nos transportes públicos. Vejo sempre se estão a passar por alguma situação de abuso. Muitas vezes estão. Agora, sou das que falam alto, começo a gritar com o abusador e coloco-me sempre entre ele e a vítima. Já por várias vezes fui buscar miúdas que estavam com uns olhos como os meus eram, e lhes dei o meu lugar, ficando eu a olhar cara a cara para o homem que estava ao lado delas. E já por uma vez dei uma descompostura a uma mãe que, perante os pedidos insistentes de um velho asqueroso para que deixasse a menina sentar-se ao seu colo, e perante os gritos da menina, que não se queria sentar ao colo daquele desconhecido, não arranjou nada melhor do que repreender a menina, que era preciso ser simpática com as pessoas, o senhor não te fez nada de mal, etc. Dei uma descompostura ao velho e à mãe, e o meu lugar à menina. Toda a gente achou que eu era uma doida histérica. Eu e a menina - que aliviada, se me agarrou ao braço o resto de viagem - sabemos que não sou.)

5. AOS CATORZE ANOS comecei a vestir-me de maneira agressiva. Queria sinalizar que era perigosa, que não se metessem comigo. Que já tinha aprendido e que dava o troco. E sobretudo, não queria ser a menina bonita que come e cala. Passei a andar de botas DocMartens de biqueira de aço, ao pescoço trazia sempre correntes de metal que fazia questão de usar caso fosse necessário. Pintei o cabelo de vermelho, andava com anéis de picos nos dedos e quanto mais agressiva parecesse, melhor. A minha cara de poucos amigos teve um resultado óptimo, sentia-me muito mais forte e os abusos cessaram.

Aos dezasseis anos, feliz com o sucesso da roupa, e já me sentindo bastante mais forte e preparada, comecei a aliviar e a alternar o agressivo com o elegante. Certa vez fui dormir a casa de uma amiga, que tinha recebido da mãe um livro sobre sexualidade. Eu também tinha recebido um livro desses da minha, mas este tinha um capítulo que não existia no meu, e folheámos as duas: era sobre violação. Eu nem sequer sabia o que era violação, nunca me tinha passado associar aquelas más experiências à sexualidade (para mim, tinham apenas e só a ver com violência e abuso de poder). Recordo-me perfeitamente do que lá dizia: após explicar que infelizmente há pessoas violentas, e de dizer mil coisas que podem ajudar a evitar uma violação (não usar saias curtas, andar sempre em grupo, etc.) dizia o que fazer caso me visse numa situação de facto: caso não me consiga libertar à força, não dar mais resistência e pensar apenas na sobrevivência; o violador gosta da resistência e isso excita-o, alimenta-lhe a agressividade e pode matar-me. Tentar então a empatia: falar baixinho, com voz suave, lembrar que sou um ser humano, dizer que poderia ser sua irmã, ou filha, ou mãe... que não lhe quero fazer mal, que não quero que me faça mal, etc... a ideia era tentar chegar ao ser humano por debaixo da besta e levá-lo assim a parar.

Tudo aquilo me pareceu horroroso, mas talvez por isso mesmo me tenha ficado gravado.

Passado algum tempo, eu estava a regressar a casa de uma saída à noite. Eu já saía à noite com os meus amigos desde os 14 anos, gostava muito de ir ao Bairro Alto e para regressar a Alcântara havia sempre um eléctrico. Nessa noite eu levava uma saia comprida, preta e azul, bastante justa nas pernas e que abria nos tornozelos como se fosse uma sereia. Comprei-a na Mango e adorava essa saia. Deixei o eléctrico no Largo do Calvário e pus-me a subir a rua. Devia ser uma da manhã. De repente, vindo do nada, ouvi uma voz colada ao meu ouvido a dizer: gostas de foder?

Era um rapaz pouco mais velho do que eu. Devia ter uns 20 anos. Colou-se a mim, agarrou-me no braço e repetiu: gostas de foder?

A rua estava deserta. Até à minha casa eram uns 300 metros. A saia justa não me deixava correr, que tinha sido a minha primeira reacção assim que senti o rapaz. Mas só conseguia dar pequenos passos. O rapaz continuava a perguntar e ia ficando cada vez mais enervado: gostas de foder? gostas de foder? GOSTAS DE FODER???

Lembrei-me do livro. Não respondi, enchi-me de coragem e fiz o ar mais cândido e angelical que consegui. Tinha medo de dizer o que quer que fosse, que me saísse a resposta errada, que a minha voz lhe excitasse a violência que me levaria certamente à violação e talvez à morte. Tive medo de ser violada e de morrer. Com o coração a bater, o homem a agarrar-me no braço e a roçar-se na minha perna, o pénis erecto contra a minha coxa, continuei a subir a rua com a minha saia justa, os meus passos pequenos, um leve sorriso doce e o olhar baixo, recatado, suave, do anho que espera que a sua inocência amoleça o carrasco e o salve da barbárie.

Quase a chegar à esquina de minha casa, de repente o braço soltou-se. O homem foi embora. Fiz os passos que restavam, devagarinho, pus a chave à porta, entrei e fechei-me com mil ferrolhos. Tirei a saia, deitei-me na cama e chorei toda a noite até ser manhã. Nunca mais usei a saia. E nunca a deitei fora.

Eu tinha dezasseis anos.

8. NÃO CABE AQUI a quantidade de vezes que vi homens no autocarro a vir na minha direcção para se masturbarem. Quem diz autocarro, diz também paragem de autocarro. Tive sorte, nunca nenhum me sujou quando ejaculou. Demorou algum tempo até lhes conseguir fazer frente. Contrariamente ao violador, o masturbador do autocarro não se excita com a reacção e pelo contrário, tal como o apalpador do metro só faz o abuso porque sabe que a vítima ficará calada por vergonha. A partir do momento em que descobri isto, passei logo a dar um sonoro "tenha vergonha, homem! Olhem todos para o que este homem está a fazer, tenha vergonha na cara!", e a coisa pára automaticamente. Mas isso aprendi eu com a idade. Nunca falei com ninguém sobre isso porque quando era miúda tinha vergonha. Comecei a andar de transportes públicos sozinha aos onze anos. Os abusadores sabem isso, sabem escolher as vítimas, as que vão ficar caladas. São quase sempre crianças.

Eu tinha onze, doze, treze, catorze, quinze, dezasseis, dezassete, dezoito, dezanove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três anos.

9. MUITO MAIS TARDE, já com 30 anos, vivia eu na Alemanha e estava a terminar o meu curso de canto lírico. O meu professor era um bonacheirão, um excelente cantor de um teatro de ópera de renome internacional, um compincha. A mulher dele era violinista na orquestra , tinham dois filhos pequenos. Depois das aulas, eu e as minhas colegas (curiosamente, só tinha alunas) costumávamos ir tomar umas cervejas com ele num barzito ao lado da faculdade. Os outros alunos da escola invejavam aquele clima de camaradagem, o professor ia às nossas festas, apanhámos tantas bebedeiras juntos... um amigalhaço.

Pouco antes do exame final de canto, um belo dia depois das aulas fui tomar um copo sozinha. Umas amigas enviaram mensagem, vamos fazer alguma coisa hoje, num instante se combinou, o professor também mandou mensagem, e lá fomos. A noite foi de farra, bebemos que nos fartámos, e acabámos numa pista de dança de um clube universitário, a dançar e a cantar aos berros músicas dos anos 80. Palermice pegada, aquelas figuras todas do "ai, está a dar aquela!", uma noite divertidíssima. Perto das quatro da manhã, já há menos gente na pista e eu começo a pensar em ir embora. De repente o professor dançante agarra-me com os dois braços e beija-me com força na boca. Eu fico horrorizada, NUNCA me tinha passado pela cabeça aquele desfecho e a última coisa que queria era ser beijada pelo meu professor. Empurrei-o imediatamente com as duas mãos. Ficámos ali uma fracção de segundo, parados a olhar um para o outro, e eu devo ter feito um ar tão estupefacto e horrorizado que ele começou a pedir desculpa, tinha-se deixado levar pelo momento. Olho para o lado, e vejo uma colega minha, parada e com olhos arregalados a olhar para a cena.

Uma vergonha imensa me invadiu. Eu tinha sido beijada pelo meu professor, tinha dançado com ele e ele tinha-me agarrado, e agora toda a escola ia pensar que eu e ele tínhamos um caso. Foi exactamente isso o que aconteceu.

Pouco tempo depois, na escola começaram os rumores de que eu tinha boas notas porque dormia com ele. O que era evidentemente mentira, mas a minha sensação de impotência era maior do que tudo. Como dizer que estava a ser assediada? Como dizer que não queria, que aquilo era uma barreira que deveria ter sido intransponível, e que eu não queria nada daquilo? Como fazer valer a minha palavra de reles aluna, contra a do grande professor e cantor de ópera de carreira internacional? E não tinha eu afinal dançado com ele? E não costumávamos sair com ele, não era ele o nosso bonacheirão?

Depois dessa noite, o professor no dia seguinte pediu muita desculpa, voltou a dizer que se tinha deixado levar, que nunca mais voltaria a acontecer e que o melhor seria esquecer o assunto. Eu assim fiz. Pouco depois, tive o meu exame de canto, terminei o curso, mas a verdade é que não queria voltar a ver aquele homem.

Depois de terminar a licenciatura, sentia que continuava a precisar de aulas de canto e fui procurar quem mas pudesse dar. O natural teria sido continuar com o professor que me acompanhou durante os anos da licenciatura, mas eu não queria de forma alguma ter mais qualquer contacto com ele. Passei a ter aulas com uma cantora local, que muito me ajudou. Ao fim de uns meses, quase um ano, inscrevi-me num concurso internacional de canto e ganhei. Éramos mais de 400 candidatos de 40 países e houve 12 laureados, a vitória teve na altura alguma repercussão e eu comecei a receber convites de agências para lá ir cantar. A coisa começou a correr bem, eu sentia que estava a chegar a bom porto em termos vocais e que tinha um bom caminho por fazer. Consegui alguns bons contratos aqui e ali, mas pensei que o ideal seria conseguir fazer audições a alguns cantores de ópera e maestros específicos, fora da massificação das audições gerais, alguém que me recomendasse e a quem eu pudesse mostrar o que tinha. O meu antigo professor tinha todos os contactos, era membro efectivo de um dos mais afamados teatros de ópera do mundo e cantava com os melhores e mais conceituados cantores e maestros, além de conhecer os agentes que verdadeiramente fazem a diferença. Resolvi então ligar-lhe, pedir-lhe que me ouvisse, para ver como tinha sido a minha evolução naquele ano, e se estivesse de acordo, que me recomendasse pelo seu circuito. Concordou, encontrámo-nos na Ópera da cidade, apresentou-me ao meu maior ídolo, o cantor René Pappe, dizendo que eu era sua aluna, e que brevemente iria fazer-lhe uma audição. O René Pappe é um gigante do canto lírico, eu nem queria acreditar na minha sorte. Mas este encontro na Ópera foi só para conversar com o professor, afinal ele não tinha tempo para me ouvir, era só para me ver. Combinámos então na semana seguinte encontrarmo-nos na faculdade. Assim foi. Cantei, ele ficou bem impressionado, deu-me os parabéns pelo prémio, disse que sim, que teria muito gosto em me ajudar. Eu fiquei radiante. E para nos lembrarmos dos velhos tempos, sugeriu que fôssemos ao tal barzito ao lado da escola para comemorar.

Os sinais de alarme soaram, mas eu pensei que estava a ser uma exagerada, afinal agora tínhamos virado a página, nem ele nem eu mencionámos o beijo de há quase dois anos, afinal ele já tinha pedido desculpa, que mal haveria numa ou duas cervejas? Lá fui. O bar estava, como sempre, apinhado com alunos de música. Galhofa aqui, galhofa ali, eu às tantas decido ir-me embora, levanto-me e vou pagar. O professor levanta-se também e acompanha-me. De pé, ao meu lado, começa a acariciar-me a cintura. Eu fico estarrecida. Estamos num bar cheio de gente. Eu digo mentalmente que isto não está a acontecer, por favor tirem-me daqui. Ele continua, a mão vai por baixo da minha blusa, chega ao soutien, sobe e desce pelas costas. Eu parada, sem conseguir dizer nada. Enquanto a mão sobe e desde, fala nas audições, no René Pappe, em como terá muito gosto em me ajudar. Eu, que estava até ali a olhar para baixo, olho para o lado (para o lado oposto ao professor, para ele é claro que nem consigo olhar) e vejo um colega de canto, que agora é também seu aluno (um aluno homem, filho de um colega seu, daí a rara excepção). O rapaz olha para a cena de olhos arregalados. Fico gelada, e qual foi a minha reacção? Sim, foi a reacção de tantas e tantas pessoas confrontadas com abuso: NEGAR TUDO E DESCULPAR O AGRESSOR. Da minha boca saíram as seguintes palavras, dirigidas ao meu colega, enquanto o professor continuava com mão nas minhas costas: "Não é o que estás a pensar. Não podes julgar, porque não conheces a história toda".

Sim, eu disse isto. Até hoje, odeio-me por tê-lo dito. Não sei o que me passou pela cabeça, naquele misto de vergonha e repúdio. Só queria não estar ali.

Deveria ter reagido de outra maneira? Sim. Consegui fazê-lo? Não.

Quando o rapaz se foi embora, tirei a mão ao professor e disse-lhe que não queria. Paguei, fui-me embora sozinha sem olhar para trás.

Escusado será dizer que nunca cantei para o René Pappe, nem para ninguém do mundo da Ópera internacional. Aquele professor tinha-me feito uma proposta, eu recusei. Para os meus colegas, eu era a que tinha dormido com o professor; para os colegas dele, a que não tinha dormido. Tudo isto me fazia náuseas. Várias portas se fecharam como que por magia. Continuei a fazer as minhas audições, da maneira que pude, evitando tudo o que passasse por aquela cidade. Infelizmente, era a cidade onde eu vivia. Progressivamente, fui perdendo a vontade de cantar, até que deixei o canto por completo. Nunca mais vi aquele professor.

Eu tinha trinta anos.

10. NO ANO PASSADO, por causa do movimento MeToo, comecei a pensar que não podia ficar calada, tinha de dizer o que me aconteceu. Ninguém quer, do meio do nada, remexer no passado e ter a vida feita num oito porque agora, em vez de ir ao supermercado comprar pão, tem de se ir ao tribunal, falar com advogado, preencher papéis, ouvir shit storms, ser acusada de tudo e mais alguma coisa, etc. Não é uma coisa agradável nem que se queira fazer de cabeça leve. Eu não tinha vontade nenhuma, mas estive dez anos com isto atravessado e já não podia mais. Achei que agora, por causa do MeToo, talvez a minha voz fosse ouvida. Soube então que uma aluna recente deste mesmo professor tinha feito queixa por assédio. De outra geração, fortalecida pela certeza de que seria ouvida, acusou-o, houve investigação e deram-lhe razão.A rapariga foi muito mais corajosa do que eu alguma vez fui e recusou-se a passar anos a culpabilizar-se, em vez disso soube desde o primeiro momento que quem estava errado ali não era ela, e que o abuso é para ser denunciado. O professor foi punido.

Para que é que serve o MeToo? É para isto.

Há mil razões para uma pessoa não apresentar queixa, para se sentir culpada, para calar durante anos e décadas. Eu hoje sou certamente uma pessoa diferente do que era aos onze, doze, quinze, trinta anos. Agora, sei responder, sei não ficar calada. Mas demorei muito para conseguir.

Eu tenho quarenta e dois anos.

11. O METOO & CO. é importante, antes de mais, porque agora se fala disso. Quando eu era miúda ninguém falava em assédio. Eram coisas que existiam, mas ninguém falava delas. Havia uma desculpabilização total do agressor e uma indiferença total para com as vítimas. Como nestas minhas histórias não havia murros, nódoas negras, penetração, então nada disto era violação e de abuso não se falava. Quem ousasse dizer alguma coisa era praticamente apedrejado em praça pública, porque não devia ter ido ali, deu-se ao proveito, devia ter tido mais cuidado, etc.

Os meus filhos, a minha sobrinha e o meu sobrinho vivem num mundo em que se fala destas coisas. E isso é óptimo. Saberão, eles e ela, que se alguém os tocar de forma que não queiram, isso não é correcto nem aceitável. E que há imensas pessoas que sim, que os quer ouvir e que vai acreditar neles. E sobretudo, que podem falar e denunciar. Que têm essa força.

Quem me dera que alguém me tivesse explicado claramente, que estas coisas são crimes e que eu não os tenho de resolver sozinha: que a minha voz será ouvida, que deve ser ouvida.

12. NÃO ME VEJO como vítima, sou uma mulher forte e muito bem resolvida. Vou a todo o lado e faço o que bem me apetece com quem bem me apetece (se a outra pessoa também estiver para aí virada, como é evidente). Se alguém me toca contra a minha vontade, é essa pessoa que está errada. Denunciar abusos não é dizer que as mulheres são umas desgraçadas e que têm de ser protegidas. Quem acha isso, não percebeu nada de nada. Denunciar abusos é: denunciar abusos. Há homens e mulheres que abusam, homens e mulheres que foram e são abusados. Nas histórias do MeToo há vítimas de ambos os sexos. A inteligência e a empatia não têm género. E o género não é desculpa para boçalidade.

13. A TODOS OS que pensam que se uma vítima passou trinta anos calada e só agora é que fala é porque a história é inventada; aos que julgam a veracidade de uma história pelo tempo que decorreu entre o sucedido e a denúncia; aos que acham que denunciar abusos é uma guerra entre homens e mulheres; aos que dizem "se fosse comigo, eu tinha logo..."; a todos os que não sabem nem querem saber por que razões (muitas!) as pessoas se calam, e porque é que as vossas desconfianças a priori ainda fazem com que se calem mais: SOIS UMA CAMBADA DE PALERMAS.

A todos os outros: vamos que vamos. Para um mundo melhor, com mais empatia, para que todos pensem e para que ninguém se cale.

#MeToo #TrintaAnosAApanharComIsto #NãoMeCalo #QueNinguémSeCale

PS - Esta lista não é exaustiva, apenas parcial. Há coisas e histórias que nem a mim própria consigo contar.

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