#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

Célia Silva Ramos, 51 anos

 Da série “Querem nomes?” Episódio: Encenadores


Ao longo de tantos anos, nunca pensei que estas estórias, pelas quais passei, viessem a afetar tanto o meu percurso como mulher e sobretudo como artista (atriz). Também pensei nunca vir a contar em público estes episódios que, sem dúvida, foram mudar para sempre todo o meu trajeto feminino e profissional. Uma mudança - ou degradação -, que é sempre gradual, até ao momento em que percebes que tens um problema grave de autoestima. A dor aparece por cada frincha do teu ser e pensas que vais sucumbir ao desatino e não compreenderes totalmente de onde ela vem. Na verdade, e no meu caso, não tive de imediato consciência do quanto iria ficar marcada e ainda mais fragilizada a todos os níveis de mim.

Vou acompanhando a minha escrita e percebo o acelerar do coração, os olhos a quererem abrir de novo portas a águas que quero passadas. A demora, o arrastar, as voltas que vou dando ao texto, até confrontar a verdadeira força e a intenção do que me faz vir aqui testemunhar. Reflito: será a vingança tantas vezes almejada? Será a raiva tantos anos acumulada? Ou apenas aproveito a onda do momento do #metoo a chegar finalmente ao nosso paisínho plantado à beira mar? Ou mesmo a solidariedade? Ou a força que quero também partilhar para ilustres colegas abrirem os seus cofres preciosos de estórias macabras, de macacos babados? Ou simplesmente porque já nada receio perder ou desejo receber deste meio, desta profissão, desta arte que amei e que terá sempre um cantinho no meu coração.

Porém, e se me atirarem à cara, que no fundo estou a buscar audiência, apenas responderei: - O cara** que te fo**! – E aqui está a parte ainda pouco sanada em mim (não precisam de dizer ou pensar que é um problema meu a resolver, porque já o sei muito bem.) Sei que se deixar passar esta oportunidade me irei voltar a fechar e talvez nem no túmulo conseguirei contar aos bichos que me irão saborear. Merda, custa contar, custa contar porque foram muitíssimos anos a sentir que é normal passar pelo que se passa quando não tens poder, quando não podes contar porque é uma vergonha não te saberes defender, porque até acreditaste que afinal, a tua mais valia era a tua caixa e não o teu conteúdo. Porque finalmente percebes que assim são as regras do jogo e tu és uma péssima jogadora, porque até é de mulheres que gostas e nem sabes muito bem lidar com eles, os gajos. E foram eles que te quiseram comer, tu disseste não, e nesse momento deitaram-te fora (toda tu, mulher e atriz).

Será agora que ganho a necessária coragem?

E na verdade, até não é necessária tanta coragem, pois mais difícil seria começar pela família - que é neste seio que a contaminação se inicia. Mas não irei contar episódios que podem desencadear ainda mais feridas. Nem irei também contar tantos momentos burlescos tão parecidos ou iguais a tantos relatos aqui expostos. Apalpões na adolescência, encostadas à parede e mãos a descobrirem talvez a cor das cuecas que vestia, os autocarros convenientemente cheios para sentir nas coxas o roçar deliberado do membro duro do rapazito que te segue na escola faz dias. Na praia o show decadente de masturbações de onde tens que sair porque a culpa é tua de gostares de estar longe do barulho das famílias, das crianças histéricas a jogar a bola. E mais cresce a culpa, por estares com a tua namorada nas dunas da praia. E és derradeiramente culpada porque tu gostas de te desnudar e devias estar de biquíni, quem sabe assim ele não ousasse sacar a “pistola", pensando que querias morrer de amores ali. As infindáveis estórias nas primeiras idas às discotecas onde na permissão do primeiro beijo molhado, te sai o garanhão que não compreende a frase “não quero ir mais longe" e te obriga a tocar-lhe para o satisfazer, algo para o qual tu ainda nem despertaste e nem sabes como se faz (mas ele teve o cuidado de te ensinar bem). Enfim, são tantos e tantos, que neste capítulo do assédio menor – sem ofensa do “menor”, apenas para explicar que estes não deixaram tantas marcas como os que considero de fato traumáticos. Aqueles que tu deixas que te alterem completamente e para sempre a vida. Será curado com o tempo, assim admites a ti mesma, quando queres encobrir a tua própria vergonha de teres passado “a normal experiência e comum da mulher” - algumas foram poupadas?!

Fiz o meu primeiro curso de teatro, na ACE, no Porto e já lá vão quase 30 anos. Na altura e para pagar os estudos e estadia, fazia muito teatro de rua e outras pequeninas intervenções artísticas, além de trabalhar em bares e restaurantes. Mas não tinha experiência no mundo das companhias e nos meandros e enredo do sistema de trabalho artístico. Já tinha percebido que não seria assim tão simples arranjar trabalho. Percebia pelos colegas que saiam da escola e ficavam desempregados. Percebia pelos grupos de " amiguinhos" que se iam formando na escola onde eu não conseguia fazer parte porque e até hoje nunca fui nem de " grupos", nem de "guettos", se é que me faço entender. Sou até muito caseirinha e ser bicho do mato nesta profissão - é uma quase sentença de morte.

Estava no início da carreira, recordo que estive em Lisboa por alguns meses no "Crime da aldeia velha“ encenação do Avilez e que a experiência de bastidores foi terrível. Era eu uma jovem imberbe e inocente mais interessada em usufruir da capital e dos seus encantos, do que propriamente em fazer amizades interesseiras com colegas desse então (alguns hoje até " grandes" nomes do teatro Português). Ui o que lá se passava entre as novatas atrizes. Recordo sentir-me muito desconfortável no meio dos atores de Lisboa, sobretudo das atrizes que me olhavam com muita frieza. A quantidade de vezes que me perguntavam se eu, depois desta peça, já tinha outra proposta de trabalho. Sempre que dizia que sim, que já tinha trabalho no Porto, passava a ganhar uma " amiga" no elenco. Menos uma ameaça. Saí de Lisboa aliviada. Mal eu sabia o que me esperava no TEP (Teatro Experimental do Porto)

Agora sim, tenho o coração a ter quase uma arritmia, preciso de ir beber água para continuar. Seria tão mais simples estar a interpretar uma estória escrita pela Maria João Pessoa, ou por ti querida Bésinha ou um Hamlet ou mesmo “Petra Von Kant”. Vá, eu sei, agora é ir até ao fim. Nada mais tenho mesmo a perder! Ou terei? Claro que sim, que ainda terei. Como sempre terão os primeiros que quebram as normas, as regras que já estão anacrónicas, todo o rebelde que quebra o paradigma é quebrado. Como o batalhão da frente, quantos se salvaram…. Muito poucas atrizes que estão no ativo e não encontraram outra forma de sobrevivência, jamais iram contar. Pois o seu ativo não se encontra assegurado pelo estrelato que provavelmente nunca alcançarão. No meu caso, na realidade, já não tem importância porque sabes que tens outra farda, outra mulher teve que ser parida em ti à força e até encontraste outro ganha- pão. E até já percebeste tudo, é esse o serviço que te presta o sofrimento: coube-te a ti esta escola de vida, por isso aprende a viver, Célia, de uma vez. Mas sim, irei partilhar num derradeiro grito de Ipiranga feminino. A avó sem netos que quer salvar os netos na mesma.

Entrei nos ensaios, super contente, afinal, e desde que tinha saído da Academia, nunca tinha ficado sem trabalho e já lá iam quase 3 anos. Ao lado de colegas com muito mais anos e prática do que eu, ena, sentia-me quase privilegiada. Só pensava o quanto iria progredir e aprender. Um elenco de luxo e um encenador vindo de Lisboa e numa companhia, o TEP, que, apesar de na altura já não estar no seu auge, era ainda uma companhia que oferecia trabalho de qualidade a muitos de nós artistas. Seria (talvez) a mais jovem do elenco. Os ensaios corriam de vento em pompa e mais ainda quando o encenador, com quem já tinha tido um encontro ainda em Lisboa, proporcionado pela minha ex-professora de Tai chi da ACE, me convida para também ser sua assistente. Que tendo eu um personagem que não estava sempre em cena me daria tempo de fazer estas anotações cénicas e que no fim de cada ensaio, me iria reunir com o dito encenador e passar as anotações. Foram vários dias assim, em que cada vez mais estas reuniões finais se alargariam a conversas e a um convite para tomar um copo na Ribeira. Um merecido relax depois de um dia e noite de trabalho - palavras dele. Aceitei e recordo comentar com a minha namorada, na altura, que já estava a ficar incomodada pela minha chegada sempre tão tardia. Não eram ciúmes, mas sabendo que era uma cortesia que fazia ao encenador desterrado por uns meses lá no Porto, achava que eu estava a ser demasiado generosa sem receber mais por isso. Falei com ele e aproveitei para lhe dizer que tinha namorada, pensando eu que tal fato, me protegeria de qualquer avanço mais indecoroso da sua parte. É claro que já me tinha passado pela cabeça, que aqueles convites levavam "água no bico".

(Pausa)

- Que faço eu?

- Que fazes tu, quando sabes que és novata na profissão. És uma mulher jovem e não sabes lutar bem com estas situações embaraçosas. Pois não tens nome, nem peso no mercado, e as coisas até estão a correr bem e tu não queres estragar. Que de alguma forma almejas os grandes teatros, os grandes palcos, os grandes textos. E que fazes tu, quando não queres dar a entender que até já percebeste o que ele quer?!

Ele um homem solito na invicta, longe da sua cidade, onde terá a esposa e filhos. Ele um encenador com já alguma fama e peso no mercado. Ele que aqui é "livre". E tu, na tua própria cidade, começas a não te sentir livre. Até porque o momento que o deres a entender, que já percebeste o que ele deseja, vais ter que te posicionar. E tens medo de o ofender na sua masculinidade. Também tens medo que ele negue e te deite por terra e te diga que: "deves ter a mania, não?!" Fui reduzindo as horas com ele no final dos ensaios e deixei de ir à Ribeira, alegando cansaço porque afinal, dava aulas de Expressão Dramática pela manhã.

E eis que todos os receios que tinha, chegaram em cada ensaio que começou por ser uma tortura. Claro, de tantas recusas e esquivos meus, ele finalmente percebera que o "rejeitara". Rejeitei os seus velados convites fora e dentro do trabalho. Alterou o seu comportamento para comigo, uma exigência e arrogância no seu modo de me orientar. Sentia que os meus colegas percebiam que algo não estava bem. Mas o comportamento era total indiferença. Como se me dissessem: - "cada um que se 'desenmerde' da melhor maneira que sabe". Quase todos os momentos me ficaram marcados. Quando era a minha vez de entrar em cena, ainda em ensaios, toda eu tremia como varas verdes, o medo de fazer algo mal como ele já me tinha acostumado, aos constantes insultos ao meu trabalho durante e nas notas finais de cada ensaio. Ouvindo várias vezes que era péssima atriz. Fizeram recordar-me algumas aulas com o Rogério de Carvalho que e apesar de sentir que até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me dizer que com uma perna torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro – opa Sr. professor, tiveste razão caralho! (Fui diagnosticada aos 10 anos, com uma doença de Calvin Perthes na anca direita - valeu-me 12 cirurgias e um joelho deformado – e todo um processo caótico de autoestima.)

Recordo uma entrada que tinha na peça, na qual tinha que projetar uma gargalhada e que me saía tão forçada. Fazia-me suar de vergonha, por saber que era horrível como atriz e nos comentários finais que ele dava a cada ator, eu levava sempre negativas. Houve um dia que quase cheguei ao meu limite. Ele quis explorar algo no meu personagem e pediu para despir a parte de cima, ficar com os seios a descoberto. Uma cena, onde eu dançava no meio e os colegas agarravam a saia grande e rodada que tinha. Eu, e quem me conhece, sabe bem que sempre tive muito à vontade com o meu corpo nu. E ainda hoje, sou uma fervorosa adepta de me desnudar ao sol numa praia deserta assim como numa situação artística, que eu considere adequada. Ali, naquela peça, naquele momento, naquele enquadramento, senti-me violada (mal eu sabia que era exatamente o que estava a acontecer). Recusei, houve uma discussão feia, fui a correr para os bastidores chorar. Colegas assistiram e mais uma vez o tal " assobio para o lado". Uma das colegas mais velhas, até me deu uma palmadinha nas costas dizendo, " vá, isso passa, recompõe-te miúda, temos uma peça a finalizar". Hoje acredito que estas palavras também queriam dizer: Vá miúda, eu também já por lá passei, anda lá se não queres ficar sem trabalho.

Tinha um amigo, o diretor da companhia com quem falei e com quem me abri. Pois cheguei ao ponto de dizer ao Júlio, ou eu ou ele. Pobre inocente e ingénua de mim. Mas sim, o Júlio apreciava-me como atriz e amiga. E lá teve uma conversa com o dito e as coisas ficaram mais serenas. Estreamos. Não foi nada de especial, com muito pouco impacto no público, apesar de bons atores e música maravilhosa do João Loio. Acredito que nenhum trabalho artístico (ou outro qualquer) pode sair brilhante se houver um único ator ou técnico revoltado, insatisfeito, humilhado no trabalho.

Não muito mais tarde, e já numa outra peça (não tenho mais vontade de contar pormenores), mas agora no Teatro Viana do Castelo, com o diretor da altura e encenador, voltei a passar por algo profundamente humilhante. Depois e também não muito mais tarde, já no Teatro Nacional S. João numa peça que até me faz rir agora de tão elucidativa deste meio, "Na hora em que não sabíamos nada uns dos outros" de Peter Handke, outra prova de humilhação. Esta foi talvez a que mais dano me fez, pois aqui eu já era menos inocente. Ainda assim, não aprendi a proteger-me, nem a fazer “bem" as coisas. Sim, é disso que se trata, aprenderes a fazer bem e a safares-te bem. E se me perguntarem: - "Porque que não contas, agora que já começaste?!". Eu responderei - "O caralho que te foda!"

Eu, sem ter disso consciência, fui ganhando medo ao trabalho como atriz, afastando-me dos grupinhos de atores e amigos dos professores da escola de teatro, e grupinho dos ex. alunos e me enclausurando. Não foi de imediato, porque só mesmo com as inúmeras audições onde te obrigam a expor, é que me fui dando conta, do medo que comecei a ter a homens (encenadores, diretores). O embaraço de ser lésbica nesta profissão era terrível. (Já para não falar no fato de que ser assediada, "seduzida" por homens pode quase provocar nojo, quando não é a tua preferência). Hoje em dia não sei muito bem, mas na altura, como havia mais homens diretores hetero, era uma espécie de “handycap“ porque o corpo, o sexo são ferramentas de arremesso. Hoje acredito e sei que a homossexualidade pode ser perversa no meio também. Mas não me sinto parte do meio, se é que alguma vez me senti.

Já há muito que sinto que a atriz que há em mim é uma criança que só representa se se sentir confortável e amada. E por isso não a posso levar a muitas audições nem trabalhar em meios, nos quais a hipocrisia e este rio lamacento aconteça constantemente.

Faço vídeos J a peixinha dentro do seu aquário de proteção! A peixinha triste porque sabe que dificilmente voltará a ver o mar!

Oh mar salgado,

de quanto do teu sal,

são lágrimas de Portugal.

A ti:

Sei que partiste deste mundo há pouquíssimo tempo. Precisamente no dia que acabei de escrever este depoimento, recebi uma notificação no telemóvel. Foi um grande choque e obviamente resolvi não postar. Foi um golpe duro que só a mim diz respeito. Gostaria de ter escrito só coisas boas de ti ( estou segura que as tiveste - esta não). Que possamos ser úteis, eu e tu, nesta nossa estória a gerações próximas mais conscientes. Que ninguém venda a sua dignidade humana a troco de um medo imbecil, arcaico, pelo teatro? Que se fo** o teatro! Possamos dar o salto quântico para a reconstrução de uma humanidade sustentada numa sinfonia harmónica que nos eleva a alma, nos preenche de êxtase e dor. E que na sua simbiose se transforme em Amor.

Sei que o fizeste porque vocês (alguns de vós) nem se apercebem, é assim e pronto. Acredito que não tenha sido a única a ser submetida ao teu poder de macho. Não há vingança, nem ódio, apenas tristeza por não ter sido capaz de te dizer na altura que tudo podia ter sido diferente. Se tu tivesses tido consciência da minha fortaleza como mulher e atriz e eu da tua debilidade como homem e encenador. Tu partiste, eu ainda cá fico. No céu pediremos desculpa um ao outro.

Peace to your soul

Célia

Adenda: Peço de certa forma desculpa, a todos os homens que mais tarde depositei a minha raiva, em atitudes menos bonitas. 




... até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me dizer que com uma perna torta torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro. 


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