Mas quase sempre o que imperava era a total indiferença
Devia ter uns 3, 4
anos. Brincava nas escadas do meu prédio quando um homem entrou para o patamar
da entrada e se sentou com as suas coisas. Lembro-me de um vulto corpulento e
coisas, muitas coisas, sacos, um casaco grosso apesar do calor. Tinha também
uma caixa com cãezinhos bebés. Subi o lanço de escadas até ao patamar para ver
aquela figura estranha de perto. O homem sorriu e mostrou-me a caixa com os
cãezinhos. Eram lindos. Ou seria apenas um? Não me lembro bem. O pêlo do cão
era da cor do vulto: castanho russo, um grande bigode. Baixei-me para fazer
festas ao cão dentro da caixa, com o sorriso do homem a incentivar-me. Sempre a
sorrir, o homem começou a mexer-me nas cuequinhas. Eu estava agachada, era
Verão, tinha um vestido com lacinhos e totós. O tempo parou com a minha
incredulidade, a minha confusão, a minha incapacidade para desvendar o
significado daquele gesto que me incomodava, apesar do sorriso aberto. Queria
chamar a minha mãe, mas tinha medo, um medo que não sabia de onde vinha, nem
porquê. Não consegui levantar-me. Mas a minha mãe ouviu-me na mesma. Apareceu
aos gritos e pôs o homem na rua enquanto o descompunha. Lembro-me apenas de uma
amálgama de som e dos braços da minha mãe a pegar em mim. E lembro-me das
cuequinhas que trazia nesse dia, com flores pequeninas.
Devia ter 8, 9 anos. A
minha mãe estava na casa da minha tia e eu andava a brincar noutra praceta.
Quando me dirigi a casa da minha tia, passei pela empena cega de um prédio que
havia formado um corredor estreito com o enorme camião estacionado ao lado do
passeio. Ao fundo um homem caminhava em direcção contrária. Vestia de escuro,
mas tinha uma mancha clara, que me pareceu estranha, na zona das calças. Uns passos
à frente percebi que tinha posto o sexo de fora. Olhou-me fixamente, sem parar,
muito sério. Senti-me encurralada, aterrorizada, o camião parecia não ter fim.
Só consegui correr quando saí dali.
Devia ter 10, 11 anos.
Brincava na varanda, terceiro andar. Ao lado do lavadouro havia uma casinha, da
EDP, creio. Atrás da casinha havia canaviais e uma horta. Estava um homem atrás
da casinha a fazer qualquer coisa. Senti curiosidade porque demorava. Mexia
muito o braço, mas estava virado para a parede, não trabalhava na horta. O
homem afastou-se e olhou para mim a rir. Masturbava-se, mas na altura eu não
sabia o que fazia. Não percebi por que raio estava ali com o sexo na mão a rir,
mas senti muito medo. Corri para dentro e fechei o estore. Fiquei às escuras na
sala a tremer.
Tinha 10, 11 anos
quando, no ciclo preparatório, os rapazes descobriram a arte de apalpar. Nós
protestávamos, defendíamo-nos, berrávamos e chamávamos nomes, mas eles só riam
e tentavam fazer pior. Comigo os apalpões acabaram quando dei um estalo ao
António Miguel que o deixou a sangrar do nariz, com a promessa de que levaria
mais se repetisse a graça.
Isto passou-se entre os
18 e os 21 anos, a caminho da faculdade. Nos anos 90 o comboios da linha de
Sintra viajavam apinhados, com pessoas penduradas nas portas e as gaiolas tão
cheias que quase entrávamos sem tocar no chão, comprimidos pelos outros corpos
aflitos com a hora, receosos de não conseguir entrar. Todos os dias. Todos os dias
algum homem tentava esfregar-se, roçar-se, apalpar. Fiquei exímia em distribuir
ostensivas cotoveladas, pisadelas e caneladas com expressão seráfica. O chapéu
de chuva tornou-se um acessório providencial. Por vezes recebia um sorriso
cúmplice de alguma mulher em frente a mim que se apercebera da situação, mas
quase sempre o que imperava era a total indiferença.
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