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Catarina Homem Marques, 37 anos

Não chega simplesmente dizer que o assédio acontece (...) é preciso mostrar, exibir a ferida


Nada disto é fácil, nem para quem conta nem para quem nos ouve (quem ouve de facto), mas às vezes parece que não chega simplesmente dizer que o assédio acontece a todas. É preciso mostrar, exibir a ferida. Aproveito então o impulso de outras e junto a minha voz ao que me parece ser uma corrente em crescendo. Faço-o ansiosa mas consciente, só com uma amostra, reduzida, no osso, sem entrar por horários nocturnos ou ir além dos anos da universidade, porque até sou uma rapariga simpática, como verão. Tenho mais histórias, temos todas, umas piores, outras melhores, não as costumo contar. É o que é, traumas bem arrumados, não estou a fazer fita, não estou alegre a partilhar isto. É só para que saibam do que andamos aqui a falar. E para que o movimento continue, não páre, não se envergonhe.


1. Entrei num café com um amigo de família, bastante mais velho. A meio da tarde. Senti que tinha uma pedra no sapato a magoar-me. Parei. Apoiei-me na porta. Sacudi o pé algumas vezes. Comecei a ouvir os risos dos muitos homens que estavam lá dentro, frases de uns para outros, senti o calor a subir-me à cara antes sequer de perceber porquê. Até que ouvi, voz gritada, para garantir que chegava a mim e a todos: «Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.» Gargalhadas. Eu tinha oito anos.


2. Estava a caminho da escola depois de almoço e atravessei um pequeno parque de estacionamento para atalhar caminho. Ouvi pancadas numa janela ao meu lado. Parei, achei que era alguém conhecido, olhei na direcção do vidro da porta dianteira do carro. Lá dentro, um homem estava sentado ao volante, a masturbar-se. Sorriu para mim. Eu gelei. Ele continuou a rir cada vez mais. Eu fugi. Tinha 14 anos.


3. Apanhei muito cedo o comboio para Lisboa, Inter-cidades, tinha aula ainda essa tarde. Tinha sono, a viagem ia demorar, estava sozinha na minha fila de bancos. Ajeitei a mochila ao meu lado, encostei o corpo e fui adormecendo. Passado pouco tempo (quero acreditar nisso, preciso de acreditar nisso) acordei ligeiramente agitada, sem saber porquê. À medida que a consciência foi voltando, senti uma impressão no rabo, mais do que no rabo na verdade, se estamos a ser honestas. Olhei devagar. Vi uma mão que vinha do banco de trás, enfiada entre as costas dos meus dois bancos, a mexer-me. Levantei-me a tremer, olhei. Ele não ficou triste por ter sido apanhado. Ficou contente. Mandou-me um beijo. Eu agarrei nas minhas coisas todas e só queria saltar do comboio. Não dava. Tive de mudar de carruagem e procurar um lugar perto de uma família de três pessoas, a sorrir, para não estranharem a minha chegada repentina a meio do percurso. Tinha 18 anos.


4. Saí a correr da faculdade, estava atrasada para apanhar o comboio, para ir passar o fim-de-semana a casa. Peguei na mala e apanhei um táxi. Assim que o carro começou a andar, ele disse: «que bela mulher, é mesmo contigo que eu vou namorar.» Sorri, nervosa. E ele continuou a falar, a dizer tantas coisas que nem consigo transcrever, sempre a olhar pelo espelho, para mim, para a minha cara. Nunca senti conhecer tão mal Lisboa como nesse dia, deixei de reconhecer as ruas, não sabia onde estava mas acho que estava num sítio que eu conhecia. Não sei também se mantive o sorriso, não sei. Sei que de repente ele encostou, virou-se para trás, deu-me um papel e uma caneta e disse: «anota o teu número, isto não fica por aqui.» Tinha a minha mala ao colo. Pensei em fugir, não consegui. Anotei o número, troquei um algarismo, devolvi o papel. Sorri. Senti um vazio de medo pela possibilidade de ele testar o número, perceber que estava errado, pus discretamente a mão no manípulo da porta. Guardou o papel no bolso. Não me lembro do resto do caminho, mas sei que apanhei o comboio. Eu tinha 20 anos.




Esta aqui quando crescer vai dar uma bela égua. Quero ver é quem a consegue montar.

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