#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

Sílvia Roque, 41 anos

Sei por que luto. Sei porque luto.





Nas últimas semanas, tenho pensado bastante nas várias agressões que sofri enquanto adulta ou naquelas que sofrerem (algumas até bem mais graves) várias amigas minhas.

Já fui ameaçada por um desconhecido com o qual não desejava conversar, a quem tinha dado as informações (absurdas) que me pediu e a quem educadamente informei que não tinha intenção de continuar a conversa. Seguem-se insultos, a seguir pega numa pedra enorme, do tamanho de um tijolo, e começa a ameaçar acertar-me com a pedra, volto para dentro carro. Revejo-me naqueles minutos de desespero e humilhação a levantar e baixar a cabeça, refugiada dentro do meu carro, sem saber se ia levar com o paralelo na cabeça, se tudo acabava ali. Se devia ligar o carro ou esperar que se fosse embora. Acabou por ir. Depois, as inúmeras voltas que dei a tremer sem saber quando poderia estacionar e entrar em casa. A minha irmã e o namorado à minha espera, à porta, para poder regressar. O pânico de voltar a estacionar perto de casa que durou, durou, já não sei quando acabou. Isto foi em Coimbra.

Um dia descia descansadamente a Avenida da Liberdade e de repente está um homem, jovem, muito bem vestido com as mãos nas minhas mamas. Tento bater-lhe, ele foge, olho em volta: ninguém, não está ninguém, nem me posso queixar à polícia. Volto a sentir a humilhação, a raiva. O que posso fazer? Cortar as mamas? Depois de andar tantos anos a esconde-los de olhares fixos e comentários humilhantes, mesmo da parte de pessoas próximas, se calhar só mesmo tirando tudo, pode ser que ninguém note que sou mulher e tenho mamas. Sim, pensei isto várias vezes, já resolvi tudo comigo própria, mas chegar a pensar nisto parece-me relativamente grave.

Já fui atacada, em El Salvador, onde fazia investigação para o meu doutoramento, por um homem, um ex-guerrilheiro e membro do FMLN, um homem que entrevistei e que me ajudou a chegar a algumas entrevistas importantes, outras menos, ossos do ofício. Talvez tenha achado que estava na hora de lhe pagar a ajuda. Nunca me senti tão em perigo como dentro daquele carro, o dele, a defender-me e a tentar parar a sua insistência. E olhem que eu tive que fugir de um motim numa prisão, e olhem que estive dentro de uma cela fechada com trinta membros de um importante gang. A violência vem quando e de onde menos esperamos.

Já fui assediada por um alto funcionário da Polícia de Ordem Pública em Bissau. Achou por bem oferecer os seus préstimos sexuais enquanto eu estava fora de casa e em resposta aos emails onde lhe solicitava dados sobre a criminalidade. Ignorei. Nojo.

Com 22 anos, fui escrever a minha dissertação de licenciatura (ainda se faziam essas coisas, sim) em Madrid, num centro de investigação para a paz. Fui convidada para estar presente num encontro internacional sobre educação popular em Vitória-Gasteiz. Tudo muito maravilhoso para quem queria construir a paz no mundo e tal, discursos feministas e tal. Durante o dia. Á noite tudo se transformava no escuro embalado pelas canções de protesto e de intervenção. Fui lá que conheci Sílvio Rodriguez, isso foi bom. Mas nunca esquecerei a noite em que fui assediada por três homens diferentes, chegando um deles a perseguir-me até ao dormitório, insistindo para que entrasse no cubículo dele. Eu tinha 22 anos, era a pessoa mais nova daquele encontro. Os três homens tinham nacionalidades diferentes, by the way. No dia seguinte nenhum pedido de desculpa, nem me olhavam nos olhos. Era só uma miúda, não interessava o que eu pudesse dizer, só interessava que lá estivesse à noite para agarrar.

Tudo isto e muito mais (que o relato já vai longo) na minha vida adulta.

No entanto, nos últimos dias, passo os olhos pelos inúmeros testemunhos sobre assédio sexual que se vão libertando. Cada vez mais fotos de meninas, crianças, estas mulheres quando foram crianças, obrigadas a crescer muito depressa. É logo aí que tudo começa. Partilho com elas o facto de ter passado por várias destas experiências: ver exibicionistas, comentários de homens mais velhos a quem toda a gente fica indiferente, os apalpões da escola acompanhado de insultos porque, claro, tu é que te deixas apalpar ou simplesmente existes, etc etc etc. A nossa vida é este etc.

E é ao ler estes relatos que volto a uma das primeiras memórias de infância, se não mesmo a primeira. Teria uns 4 anos. Um grupo de meninos, da mesma idade, agarra a minha melhor amiga, na creche, deita-a no chão e baixa-lhe as cuecas. Ali está o pipi para toda a gente analisar. Ela grita, esperneia, chora. Todos à volta riem. Eu congelei. A memória é tramada, desfocada. O que é que fiz mesmo? Disse para pararem? Chamei adultas? Não disse nada? Será que em algum momento me ri para não destoar? Não sei exatamente o que fiz, e até hoje vivo com essa incerteza e essa mágoa. Sei que essa imagem nunca vai sair da minha cabeça.

E sei, sobretudo, que esta não devia ser a primeira memória da infância de ninguém. Sei que não quero mais crianças a fazer isto e a sofrer isto.



... esta não devia ser a primeira memória da infância de ninguém. 

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