Antes de mais um agradecimento por todos os testemunhos que precederam o meu e que me deram coragem para escrever.
Eu nem sei bem por onde começar. Na maioria
dos casos que vou partilhar aqui, as palavras não fazem jus ao sofrimento e às
feridas que ficam, muitas vezes para sempre, e que nos atacam de forma
inconsciente e nos bloqueiam nos actos. E pior que tudo, que nos impedem de
sonhar. Já nem nos atrevemos a sonhar porque um dia nós chegámos onde queríamos
chegar e alguém nos humilhou e ameaçou e agora esse medo está cravado em nós. É
uma tatuagem química que não sai, que por vezes nem a terapia consegue
resolver. Sabemos que não foi uma exceção, sabemos que é estrutural e por isso
mais comum do que quisemos imaginar. E isso faz-nos ficar desconfiadas.
Qualquer um pode ser um predador sexual. Não existem sinais visíveis que os
identifiquem. Os níveis de cortisol ficam altos e o corpo não esquece a
violência. Por isso nem sempre as palavras permitem comunicar o impacto dessas
mesmas agressões.
Não me demoro mais. Tudo começa na
infância. Sempre. Um horror ler vossas histórias e entender que quase desde o
nascimento já somos sexualizadas. Não como agentes da nossa sexualidade, mas
sempre como objectos e como potenciais vítimas de agressão e abuso. De que me
recorde os assédios com recurso a piropos de linguagem vulgar e agressiva,
extremamente sexualizantes começaram quando tinha 12 anos. Foi a idade em que
comecei a curvar os ombros, a tentar esconder as mamas (que eram consideradas
grandes), a usar roupas largas para que não nos sexualizassem. Mas sexualizam.
Era o “fodia-te essa c*na toda” gritado de carros e por vezes mesmo gritado ao
cruzar certos homens na rua, a caminho da escola. Homens com idade para serem
meu pai ou avô. E a família, avisa sempre: não olhem, não respondam. Passamos a
normalizar o abominável.
Mas antes disso, já na infância me recordo
dos comentários inapropriados feitos por alguns adultos, como por exemplo o
empregado de pastelaria que conhecia a minha mãe e que se metia comigo e dizia
que era tão bonitinha, que quando fosse crescida ia ser sua namorada. Em que
universo é que isto faz sentido? E as pessoas em volta riem nervosamente e
seguem com a sua vida, e ainda fazem gracinhas sobre o facto de nós as meninas
ficarmos envergonhadas com o sucedido e fugirmos. Fiquei sempre com a sensação
de que eu tinha um problema e que era tímida. E não, o problema não era meu. O
comentário era desadequado e continua a ser desadequado. Sempre foi. Não tentem
suavizar. E isto segue-nos pela escola e pela vida fora. Ter vergonha de usar
vestidos de alças num país que atinge 40 graus no verão, porque o professor pode
olhar lascivamente, ou o funcionário da escola, o colega, o desconhecido, ou o
polícia! Ninguém nos protege. Acusam-nos de sermos nós a provocar. O problema
é nosso. Não são estes homens adultos nojentos produto de uma sociedade
patriarcal que odeia mulheres, somos nós, as meninas. Eu ainda nem tinha dado
um beijo ou iniciado a minha vida sexual e já havia homens a sexualizar-me. E é
nesse contexto que nos vamos envergonhando e construindo uma vida sexual
baseada na culpa, no desconhecimento do nosso corpo, e que nos exige quase
sempre que sejamos objecto e não agentes da nossa própria sexualidade. Queremos
esconder o nosso corpo. Não nos permitimos aceder à nossa sexualidade. Nós as
meninas, as adolescentes e as mulheres temos direito a explorar a nossa
sexualidade como queremos, ao nosso ritmo, sem termos de estar sempre na mira
de potenciais predadores. Não explores a tua sexualidade senão eles têm o
direito de te pegar. É esta a ideia com que ficamos.
Alongo-me, quero também expor factos. O
assédio constante na escola, onde colegas rapazes nos apalpam, espreitam para
debaixo da saia, e os adultos responsáveis, os profissionais de educação nada
fazem. Ainda soltam um ralhete e depois comentam sobre a nossa roupa e o nosso
comportamento. “Ah, pois, com aquelas mamas e aquela blusa”. Fica em suspenso
(sempre) a ideia do “estava mesmo a pedi-las”.
Recordo também - e sobre este acontecimento
nem consigo escrever muito porque ainda hoje sou assaltada por um cocktail de
sentimentos entre a vergonha e o nojo - a minha primeira ida a um
ginecologista. Eu devia ter uns 19 anos. Ele era um homem de 50 anos. Ainda
hoje, quando me recordo dessa visita, me sinto violada. A forma como ele me
examinou, o sorriso maroto porque eu ainda era "virgem" (o conceito-mor
do patriarcado) Enfim, desculpem, nem consigo continuar. Durante muitos anos
neguei-me a ir a um ginecologista. E ainda fiquei a pensar que eu é que tinha
um problema, porque claro, para além de putas as mulheres podem também ser
demasiado reprimidas e pudicas. E é um problema nosso, claro, não uma
manifestação de stress pós traumático por sermos assediadas quase desde o
momento em começamos a andar. O mesmo “profissional” de saúde ainda fez questão
de me dizer que a pílula não engordava. Que as mulheres ganham peso depois de
começar a tomar porque ficam super relaxadas, por já não correrem o risco de
engravidar, e por isso começam a comer mais. Enfim, um nojo absoluto.
Passo à frente. Tenho 20 ou 21 anos. Vou
fazer aulas de condução. Começo por dizer que ainda hoje não conduzo. Em grande
parte por causa do que vou contar em seguida. Sempre me senti desconfortável
com o meu instrutor. Nas primeiras aulas levava-me sempre a ver o pôr do sol
nas estradas que estavam em construção, para que eu pudesse treinar à vontade.
Pedia-me para estacionar e depois comentava a beleza do pôr do sol. Como nunca
fez nenhum avanço eu culpava-me pelo mal estar. Dizia a mim mesma que estava
tudo na minha cabeça. Até que um dia, no final de uma aula, já de noite, depois
de eu estacionar em frente da escola ele começa a dizer-me que eu lhe recordava
a ex-mulher. Que eu era tão gira e que ele sabia que eu me vestia assim para o
provocar. Eu podia detalhar a roupa que levava, e explicar que não era nada
sexual, mas isso já seria dar-lhe razão nos seus argumentos patriarcais. Não
soube como reagir. Na altura tinha medo de contar aos meus pais, porque tinha
medo que a culpa ainda recaísse sobre mim (tal é o descrédito que a sociedade
patriarcal tem em nós e isso até nos afasta de procurar ajuda no amor do seio
familiar ) e estupidamente desabafei com o meu namorado da altura (uma pessoa
abusiva da pior espécie) que ao invés de me ajudar, desatou a rir e achou que a
história era divertida. E ainda nos perguntam porque é que não pedimos ajuda… deixei
de ir às aulas, a um certo momento pedi para trocar de instrutor na escola, mas
eles apenas permitiam trocas se eu justificasse a causa do pedido, e como eu
tive medo e não tinha provas (acho que todas vós conhecem bem estes momentos)
acabei por nunca o fazer e seguir nas aulas com ele. Felizmente, nunca mais me
assediou diretamente - talvez a escola lhe tenha falado do meu pedido - mas
quando eu chumbei no exame de condução - ele gritou comigo o caminho todo.
Ainda hoje luto com sentimentos de culpa por não ter apresentado uma queixa.
Mas sei que isso é injusto, não apresentei porque me sentia sozinha. A
sociedade patriarcal tem este efeito em nós, um sentimento de isolamento
acompanhado da impunidade dos abusadores. Voltei a tentar tirar a carta. O instrutor
era homem. Nunca me assediou. Mas eu fiz 3 aulas, sempre em pânico que voltasse
a suceder, e a ansiedade nos dias anteriores às aulas era tão grande, que
acabei por desistir.
Uns anos mais tarde num domingo ao fim da
tarde, enquanto regressava de casa de uma amiga que morava numa perpendicular à
Av. Almirante Reis, fui perseguida por um homem tarado. Não me apercebi logo
porque estava ao telefone com um amigo. Apenas notei que alguém caminhava atrás
de mim e que estava a falar constantemente. Assumi que falava também ao
telefone, mas não era nada disso. Ele falava para mim. Dizia coisas obscenas
sobre mim, e com o passar do tempo começou a explicitar de forma detalhada o
que ia fazer comigo (obviamente tudo sexual e não consentido), ou numa ruela, ou
num vão de escada. Nesse momento enfrentei-o e gritei-lhe que parasse. As
poucas pessoas que estavam na mesma rua ignoraram o que estava a acontecer.
Tive muito medo, ele continuou a seguir-me e a recitar o rol mais porco de
piropos / ameaças sexuais que escutei até hoje. A certo momento entrei na única
loja que estava aberta. Era uma loja minúscula. Não havia nada para ver, mas eu
fiquei ali a fingir-me muito interessada nas poucas roupas expostas. Tremia
como varas verdes. Não sabia se ele me esperava lá fora. Nem sei quanto tempo
fiquei ali a olhar aquele expositor. A pessoa na loja não falava português, nem
inglês, então não pude explicar ou pedir ajuda, mas deixou-me ficar ali, foi
reconfortante ter aquela companhia/possível testemunha. A certo momento ganhei
coragem para sair, corri para o Metro, mas durante todo o caminho estava em
pânico, a olhar para todos os lados com medo que me seguisse. Durante anos não
consegui caminhar sozinha na Almirante Reis, especialmente junto ao intendente.
Mesmo acompanhada dava por mim a tremer.
Isto obviamente segue-nos para o trabalho.
Durante uns meses trabalhei numa livraria de Lisboa e entendi o quão comum é o
assédio quando se trabalha num espaço público. Clientes que nos perseguem na
loja, funcionárias que têm de se esconder (no seu local de trabalho) porque um
cliente lá vai para as ver e para as assediar, e que inclusivamente decorou o
seu horário rotativo e por turnos só para que ela não possa escapar! Também me
aconteceu, mais do que uma vez, mas contarei apenas as piores. Logo na minha 2a
semana, apareceu um cliente, a princípio muito simpático, que me perguntou por
livros sobre um determinado tópico. Com toda a simpatia o dirigi ao local onde
podia encontrar os ditos livros, e quando eu já estava a regressar ao balcão,
ele chamou-me e mostrou-me um livro. Quando olhei para o dito livro, era um
livro erótico / burlesco com imagens de mulheres e homens em posições
sugestivas, de conteúdo altamente sexual, e ele olhou para mim com aquele
prazer de quem assedia uma mulher, especialmente uma que é claramente novata na
profissão, que trabalha em atendimento e que ele assume pertencer a um estrato
social mais baixo. O mesmo cliente voltou a chamar-me várias vezes para me
deitar olhares lascivos, e no final do meu turno, quando estava a sair do local
de trabalho na companhia de uma amiga, ele seguiu-nos e a certo momento
bloqueando-nos o caminho, disse: “Estou a ficar no hotel X, se te apetecer é o
quarto número…”. O NOJO. No dia seguinte contei ao meu chefe e aos colegas e
felizmente a equipa combinou interceder sempre que ele aparecesse por lá, o que
efetivamente aconteceu, passado um mês ou dois. Ainda nas minhas primeiras
semanas, também se deu o caso de um cliente que apareceu na loja pelas 20h já
bem bebido e procurando poesia sobre o “aborto”, e que regressou umas horas
depois (ao fecho) a convidar-me para ir com ele para Castelo Branco. Eu estava
nesse momento sozinha e disse-lhe que não (morrendo de medo que me esperasse na
rua) e na sequência dessa nega, começou a gritar comigo, dizendo-me que as
gajas de Lisboa eram todas umas putas sem educação. Apesar de ser óbvio o que
estava a acontecer, nenhum segurança do dito estabelecimento comercial apareceu
para me ajudar. Houve muitos momentos em que fui trabalhar com medo,
especialmente nos turnos da noite, por ter de caminhar sozinha por uns 20min
até casa, e ter medo de ser seguida.
Uma das piores situações que me aconteceu é
a que descreverei agora. Mas por ser tão grave, e por sentir que teve um enorme
impacto na minha vida profissional, nem consigo detalhar muito. Ainda me dói e
ainda me impacta. Nas pesquisas para o meu doutoramento, tive de visitar vários
arquivos. Em muitos deles só está um arquivista ou um funcionário. Muitos são
em locais de pouca visibilidade nos edifícios. Muitos não trabalham em horário
completo, mas apenas por marcação. Num desses arquivos aconteceu-me algo
horrível. Eu tinha de passar lá os dias e estava sozinha com ele num lugar onde
ninguém me escutaria, caso algo acontecesse. Notei que desde o primeiro dia ele
se foi aproximando cada vez mais, um toque no ombro aqui e ali, o aparecer na
sala onde eu fazia a leitura “só para ver como eu estava” e depois ficava a
olhar para mim com olhar creepy, o toque na mão quando lhe entreguei a chave,
as informações não pedidas sobre o seu horário e horas a que deixava o serviço.
Todos nós sabemos reconhecer quando algo está para acontecer. E eu senti-o.
Sabia que ele se preparava para fazer algo. Então deixei de aparecer. Só
regressei na companhia de um colega homem, a quem ainda hoje agradeço o facto
de ter conseguido completar a minha tese. No momento em que regressei
acompanhada de um homem, ele começou a ser rude, bruto, nem olhou para o meu
colega quando os apresentei. Aí soubemos que a minha intuição estava certa.
Algo estava para acontecer. Na sequência de todos esses ataques de ansiedade
que tive enquanto trabalhei lá sozinha, acabei por ter um episódio gravíssimo
de refluxo gastroesofágico, que me levou às urgências hospitalares, e que transformou
para sempre a minha saúde, sendo hoje algo crónico. E a pior consequência desse
episódio: o medo que eu ganhei de visitar arquivos, a demora na escrita e
entrega da minha tese (porque não ia aos arquivos e durante o processo de
escrita era constantemente “triggered” quando lia a informação colhida nesse
arquivo) e a desistência de seguir na carreira académica. Só recentemente me
apercebi do impacto que esta história teve no meu desenvolvimento profissional.
Acabei por defender a minha tese com imenso sucesso e esse exame foi louvado e
amplamente elogiado por todos os que estavam presentes. Em seguida, foi-me
oferecida uma bolsa de pós-doutoramento que recusei. Na altura pensei que era
porque queria estar em Berlim. Mas foi só na segurança da distância, e na
segurança de uma relação terapêutica, que eu comecei a entender o impacto que
essa situação teve e tem ainda em mim e nessa decisão. Desse episódio ficou
comigo um enorme medo de estar sozinha com um homem num gabinete ou num piso de
uma instituição.
Há muitas histórias que ficam por contar.
Mas deixo aqui algumas que me marcaram profundamente e que ainda impactam a
forma como me movimento no mundo, que impactam a minha auto-imagem, a minha
relação com o sexo masculino, as minhas escolhas profissionais, os sonhos que
me permito sonhar.
Nenhuma de nós deveria ter de passar por
isto. Mas agora estamos juntas. Que esta pequena onda vire tsunami e que
derrube o machismo estrutural. Que se abram novos caminhos!
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