#metoo #estamosjuntas #somosmuitas #nãoestousó #aculpanãoéminha

Denise Pereira, 37 anos


Antes de mais um agradecimento por todos os testemunhos que precederam o meu e que me deram coragem para escrever.

Eu nem sei bem por onde começar. Na maioria dos casos que vou partilhar aqui, as palavras não fazem jus ao sofrimento e às feridas que ficam, muitas vezes para sempre, e que nos atacam de forma inconsciente e nos bloqueiam nos actos. E pior que tudo, que nos impedem de sonhar. Já nem nos atrevemos a sonhar porque um dia nós chegámos onde queríamos chegar e alguém nos humilhou e ameaçou e agora esse medo está cravado em nós. É uma tatuagem química que não sai, que por vezes nem a terapia consegue resolver. Sabemos que não foi uma exceção, sabemos que é estrutural e por isso mais comum do que quisemos imaginar. E isso faz-nos ficar desconfiadas. Qualquer um pode ser um predador sexual. Não existem sinais visíveis que os identifiquem. Os níveis de cortisol ficam altos e o corpo não esquece a violência. Por isso nem sempre as palavras permitem comunicar o impacto dessas mesmas agressões.

Não me demoro mais. Tudo começa na infância. Sempre. Um horror ler vossas histórias e entender que quase desde o nascimento já somos sexualizadas. Não como agentes da nossa sexualidade, mas sempre como objectos e como potenciais vítimas de agressão e abuso. De que me recorde os assédios com recurso a piropos de linguagem vulgar e agressiva, extremamente sexualizantes começaram quando tinha 12 anos. Foi a idade em que comecei a curvar os ombros, a tentar esconder as mamas (que eram consideradas grandes), a usar roupas largas para que não nos sexualizassem. Mas sexualizam. Era o “fodia-te essa c*na toda” gritado de carros e por vezes mesmo gritado ao cruzar certos homens na rua, a caminho da escola. Homens com idade para serem meu pai ou avô. E a família, avisa sempre: não olhem, não respondam. Passamos a normalizar o abominável.

Mas antes disso, já na infância me recordo dos comentários inapropriados feitos por alguns adultos, como por exemplo o empregado de pastelaria que conhecia a minha mãe e que se metia comigo e dizia que era tão bonitinha, que quando fosse crescida ia ser sua namorada. Em que universo é que isto faz sentido? E as pessoas em volta riem nervosamente e seguem com a sua vida, e ainda fazem gracinhas sobre o facto de nós as meninas ficarmos envergonhadas com o sucedido e fugirmos. Fiquei sempre com a sensação de que eu tinha um problema e que era tímida. E não, o problema não era meu. O comentário era desadequado e continua a ser desadequado. Sempre foi. Não tentem suavizar. E isto segue-nos pela escola e pela vida fora. Ter vergonha de usar vestidos de alças num país que atinge 40 graus no verão, porque o professor pode olhar lascivamente, ou o funcionário da escola, o colega, o desconhecido, ou o polícia! Ninguém nos protege. Acusam-nos de sermos nós a provocar. O problema é nosso. Não são estes homens adultos nojentos produto de uma sociedade patriarcal que odeia mulheres, somos nós, as meninas. Eu ainda nem tinha dado um beijo ou iniciado a minha vida sexual e já havia homens a sexualizar-me. E é nesse contexto que nos vamos envergonhando e construindo uma vida sexual baseada na culpa, no desconhecimento do nosso corpo, e que nos exige quase sempre que sejamos objecto e não agentes da nossa própria sexualidade. Queremos esconder o nosso corpo. Não nos permitimos aceder à nossa sexualidade. Nós as meninas, as adolescentes e as mulheres temos direito a explorar a nossa sexualidade como queremos, ao nosso ritmo, sem termos de estar sempre na mira de potenciais predadores. Não explores a tua sexualidade senão eles têm o direito de te pegar. É esta a ideia com que ficamos.

Alongo-me, quero também expor factos. O assédio constante na escola, onde colegas rapazes nos apalpam, espreitam para debaixo da saia, e os adultos responsáveis, os profissionais de educação nada fazem. Ainda soltam um ralhete e depois comentam sobre a nossa roupa e o nosso comportamento. “Ah, pois, com aquelas mamas e aquela blusa”. Fica em suspenso (sempre) a ideia do “estava mesmo a pedi-las”.

Recordo também - e sobre este acontecimento nem consigo escrever muito porque ainda hoje sou assaltada por um cocktail de sentimentos entre a vergonha e o nojo - a minha primeira ida a um ginecologista. Eu devia ter uns 19 anos. Ele era um homem de 50 anos. Ainda hoje, quando me recordo dessa visita, me sinto violada. A forma como ele me examinou, o sorriso maroto porque eu ainda era "virgem" (o conceito-mor do patriarcado) Enfim, desculpem, nem consigo continuar. Durante muitos anos neguei-me a ir a um ginecologista. E ainda fiquei a pensar que eu é que tinha um problema, porque claro, para além de putas as mulheres podem também ser demasiado reprimidas e pudicas. E é um problema nosso, claro, não uma manifestação de stress pós traumático por sermos assediadas quase desde o momento em começamos a andar. O mesmo “profissional” de saúde ainda fez questão de me dizer que a pílula não engordava. Que as mulheres ganham peso depois de começar a tomar porque ficam super relaxadas, por já não correrem o risco de engravidar, e por isso começam a comer mais. Enfim, um nojo absoluto.

Passo à frente. Tenho 20 ou 21 anos. Vou fazer aulas de condução. Começo por dizer que ainda hoje não conduzo. Em grande parte por causa do que vou contar em seguida. Sempre me senti desconfortável com o meu instrutor. Nas primeiras aulas levava-me sempre a ver o pôr do sol nas estradas que estavam em construção, para que eu pudesse treinar à vontade. Pedia-me para estacionar e depois comentava a beleza do pôr do sol. Como nunca fez nenhum avanço eu culpava-me pelo mal estar. Dizia a mim mesma que estava tudo na minha cabeça. Até que um dia, no final de uma aula, já de noite, depois de eu estacionar em frente da escola ele começa a dizer-me que eu lhe recordava a ex-mulher. Que eu era tão gira e que ele sabia que eu me vestia assim para o provocar. Eu podia detalhar a roupa que levava, e explicar que não era nada sexual, mas isso já seria dar-lhe razão nos seus argumentos patriarcais. Não soube como reagir. Na altura tinha medo de contar aos meus pais, porque tinha medo que a culpa ainda recaísse sobre mim (tal é o descrédito que a sociedade patriarcal tem em nós e isso até nos afasta de procurar ajuda no amor do seio familiar ) e estupidamente desabafei com o meu namorado da altura (uma pessoa abusiva da pior espécie) que ao invés de me ajudar, desatou a rir e achou que a história era divertida. E ainda nos perguntam porque é que não pedimos ajuda… deixei de ir às aulas, a um certo momento pedi para trocar de instrutor na escola, mas eles apenas permitiam trocas se eu justificasse a causa do pedido, e como eu tive medo e não tinha provas (acho que todas vós conhecem bem estes momentos) acabei por nunca o fazer e seguir nas aulas com ele. Felizmente, nunca mais me assediou diretamente - talvez a escola lhe tenha falado do meu pedido - mas quando eu chumbei no exame de condução - ele gritou comigo o caminho todo. Ainda hoje luto com sentimentos de culpa por não ter apresentado uma queixa. Mas sei que isso é injusto, não apresentei porque me sentia sozinha. A sociedade patriarcal tem este efeito em nós, um sentimento de isolamento acompanhado da impunidade dos abusadores. Voltei a tentar tirar a carta. O instrutor era homem. Nunca me assediou. Mas eu fiz 3 aulas, sempre em pânico que voltasse a suceder, e a ansiedade nos dias anteriores às aulas era tão grande, que acabei por desistir.

Uns anos mais tarde num domingo ao fim da tarde, enquanto regressava de casa de uma amiga que morava numa perpendicular à Av. Almirante Reis, fui perseguida por um homem tarado. Não me apercebi logo porque estava ao telefone com um amigo. Apenas notei que alguém caminhava atrás de mim e que estava a falar constantemente. Assumi que falava também ao telefone, mas não era nada disso. Ele falava para mim. Dizia coisas obscenas sobre mim, e com o passar do tempo começou a explicitar de forma detalhada o que ia fazer comigo (obviamente tudo sexual e não consentido), ou numa ruela, ou num vão de escada. Nesse momento enfrentei-o e gritei-lhe que parasse. As poucas pessoas que estavam na mesma rua ignoraram o que estava a acontecer. Tive muito medo, ele continuou a seguir-me e a recitar o rol mais porco de piropos / ameaças sexuais que escutei até hoje. A certo momento entrei na única loja que estava aberta. Era uma loja minúscula. Não havia nada para ver, mas eu fiquei ali a fingir-me muito interessada nas poucas roupas expostas. Tremia como varas verdes. Não sabia se ele me esperava lá fora. Nem sei quanto tempo fiquei ali a olhar aquele expositor. A pessoa na loja não falava português, nem inglês, então não pude explicar ou pedir ajuda, mas deixou-me ficar ali, foi reconfortante ter aquela companhia/possível testemunha. A certo momento ganhei coragem para sair, corri para o Metro, mas durante todo o caminho estava em pânico, a olhar para todos os lados com medo que me seguisse. Durante anos não consegui caminhar sozinha na Almirante Reis, especialmente junto ao intendente. Mesmo acompanhada dava por mim a tremer.

Isto obviamente segue-nos para o trabalho. Durante uns meses trabalhei numa livraria de Lisboa e entendi o quão comum é o assédio quando se trabalha num espaço público. Clientes que nos perseguem na loja, funcionárias que têm de se esconder (no seu local de trabalho) porque um cliente lá vai para as ver e para as assediar, e que inclusivamente decorou o seu horário rotativo e por turnos só para que ela não possa escapar! Também me aconteceu, mais do que uma vez, mas contarei apenas as piores. Logo na minha 2a semana, apareceu um cliente, a princípio muito simpático, que me perguntou por livros sobre um determinado tópico. Com toda a simpatia o dirigi ao local onde podia encontrar os ditos livros, e quando eu já estava a regressar ao balcão, ele chamou-me e mostrou-me um livro. Quando olhei para o dito livro, era um livro erótico / burlesco com imagens de mulheres e homens em posições sugestivas, de conteúdo altamente sexual, e ele olhou para mim com aquele prazer de quem assedia uma mulher, especialmente uma que é claramente novata na profissão, que trabalha em atendimento e que ele assume pertencer a um estrato social mais baixo. O mesmo cliente voltou a chamar-me várias vezes para me deitar olhares lascivos, e no final do meu turno, quando estava a sair do local de trabalho na companhia de uma amiga, ele seguiu-nos e a certo momento bloqueando-nos o caminho, disse: “Estou a ficar no hotel X, se te apetecer é o quarto número…”. O NOJO. No dia seguinte contei ao meu chefe e aos colegas e felizmente a equipa combinou interceder sempre que ele aparecesse por lá, o que efetivamente aconteceu, passado um mês ou dois. Ainda nas minhas primeiras semanas, também se deu o caso de um cliente que apareceu na loja pelas 20h já bem bebido e procurando poesia sobre o “aborto”, e que regressou umas horas depois (ao fecho) a convidar-me para ir com ele para Castelo Branco. Eu estava nesse momento sozinha e disse-lhe que não (morrendo de medo que me esperasse na rua) e na sequência dessa nega, começou a gritar comigo, dizendo-me que as gajas de Lisboa eram todas umas putas sem educação. Apesar de ser óbvio o que estava a acontecer, nenhum segurança do dito estabelecimento comercial apareceu para me ajudar. Houve muitos momentos em que fui trabalhar com medo, especialmente nos turnos da noite, por ter de caminhar sozinha por uns 20min até casa, e ter medo de ser seguida.

Uma das piores situações que me aconteceu é a que descreverei agora. Mas por ser tão grave, e por sentir que teve um enorme impacto na minha vida profissional, nem consigo detalhar muito. Ainda me dói e ainda me impacta. Nas pesquisas para o meu doutoramento, tive de visitar vários arquivos. Em muitos deles só está um arquivista ou um funcionário. Muitos são em locais de pouca visibilidade nos edifícios. Muitos não trabalham em horário completo, mas apenas por marcação. Num desses arquivos aconteceu-me algo horrível. Eu tinha de passar lá os dias e estava sozinha com ele num lugar onde ninguém me escutaria, caso algo acontecesse. Notei que desde o primeiro dia ele se foi aproximando cada vez mais, um toque no ombro aqui e ali, o aparecer na sala onde eu fazia a leitura “só para ver como eu estava” e depois ficava a olhar para mim com olhar creepy, o toque na mão quando lhe entreguei a chave, as informações não pedidas sobre o seu horário e horas a que deixava o serviço. Todos nós sabemos reconhecer quando algo está para acontecer. E eu senti-o. Sabia que ele se preparava para fazer algo. Então deixei de aparecer. Só regressei na companhia de um colega homem, a quem ainda hoje agradeço o facto de ter conseguido completar a minha tese. No momento em que regressei acompanhada de um homem, ele começou a ser rude, bruto, nem olhou para o meu colega quando os apresentei. Aí soubemos que a minha intuição estava certa. Algo estava para acontecer. Na sequência de todos esses ataques de ansiedade que tive enquanto trabalhei lá sozinha, acabei por ter um episódio gravíssimo de refluxo gastroesofágico, que me levou às urgências hospitalares, e que transformou para sempre a minha saúde, sendo hoje algo crónico. E a pior consequência desse episódio: o medo que eu ganhei de visitar arquivos, a demora na escrita e entrega da minha tese (porque não ia aos arquivos e durante o processo de escrita era constantemente “triggered” quando lia a informação colhida nesse arquivo) e a desistência de seguir na carreira académica. Só recentemente me apercebi do impacto que esta história teve no meu desenvolvimento profissional. Acabei por defender a minha tese com imenso sucesso e esse exame foi louvado e amplamente elogiado por todos os que estavam presentes. Em seguida, foi-me oferecida uma bolsa de pós-doutoramento que recusei. Na altura pensei que era porque queria estar em Berlim. Mas foi só na segurança da distância, e na segurança de uma relação terapêutica, que eu comecei a entender o impacto que essa situação teve e tem ainda em mim e nessa decisão. Desse episódio ficou comigo um enorme medo de estar sozinha com um homem num gabinete ou num piso de uma instituição.

Há muitas histórias que ficam por contar. Mas deixo aqui algumas que me marcaram profundamente e que ainda impactam a forma como me movimento no mundo, que impactam a minha auto-imagem, a minha relação com o sexo masculino, as minhas escolhas profissionais, os sonhos que me permito sonhar.

Nenhuma de nós deveria ter de passar por isto. Mas agora estamos juntas. Que esta pequena onda vire tsunami e que derrube o machismo estrutural. Que se abram novos caminhos!

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