Da série “Querem
nomes?” Episódio: Encenadores
Ao longo de tantos
anos, nunca pensei que estas estórias, pelas quais passei, viessem a afetar
tanto o meu percurso como mulher e sobretudo como artista (atriz). Também
pensei nunca vir a contar em público estes episódios que, sem dúvida, foram
mudar para sempre todo o meu trajeto feminino e profissional. Uma mudança - ou
degradação -, que é sempre gradual, até ao momento em que percebes que tens um
problema grave de autoestima. A dor aparece por cada frincha do teu ser e
pensas que vais sucumbir ao desatino e não compreenderes totalmente de onde ela
vem. Na verdade, e no meu caso, não tive de imediato consciência do quanto iria
ficar marcada e ainda mais fragilizada a todos os níveis de mim.
Vou acompanhando a
minha escrita e percebo o acelerar do coração, os olhos a quererem abrir de
novo portas a águas que quero passadas. A demora, o arrastar, as voltas que vou
dando ao texto, até confrontar a verdadeira força e a intenção do que me faz
vir aqui testemunhar. Reflito: será a vingança tantas vezes almejada? Será a
raiva tantos anos acumulada? Ou apenas aproveito a onda do momento do #metoo a
chegar finalmente ao nosso paisínho plantado à beira mar? Ou mesmo a
solidariedade? Ou a força que quero também partilhar para ilustres colegas
abrirem os seus cofres preciosos de estórias macabras, de macacos babados? Ou
simplesmente porque já nada receio perder ou desejo receber deste meio, desta
profissão, desta arte que amei e que terá sempre um cantinho no meu coração.
Porém, e se me
atirarem à cara, que no fundo estou a buscar audiência, apenas responderei: - O
cara** que te fo**! – E aqui está a parte ainda pouco sanada em mim (não
precisam de dizer ou pensar que é um problema meu a resolver, porque já o sei
muito bem.) Sei que se deixar passar esta oportunidade me irei voltar a fechar
e talvez nem no túmulo conseguirei contar aos bichos que me irão saborear.
Merda, custa contar, custa contar porque foram muitíssimos anos a sentir que é
normal passar pelo que se passa quando não tens poder, quando não podes contar
porque é uma vergonha não te saberes defender, porque até acreditaste que
afinal, a tua mais valia era a tua caixa e não o teu conteúdo. Porque
finalmente percebes que assim são as regras do jogo e tu és uma péssima
jogadora, porque até é de mulheres que gostas e nem sabes muito bem lidar com
eles, os gajos. E foram eles que te quiseram comer, tu disseste não, e nesse
momento deitaram-te fora (toda tu, mulher e atriz).
Será agora que ganho a
necessária coragem?
E na verdade, até não
é necessária tanta coragem, pois mais difícil seria começar pela família - que
é neste seio que a contaminação se inicia. Mas não irei contar episódios que
podem desencadear ainda mais feridas. Nem irei também contar tantos momentos
burlescos tão parecidos ou iguais a tantos relatos aqui expostos. Apalpões na
adolescência, encostadas à parede e mãos a descobrirem talvez a cor das cuecas
que vestia, os autocarros convenientemente cheios para sentir nas coxas o roçar
deliberado do membro duro do rapazito que te segue na escola faz dias. Na praia
o show decadente de masturbações de onde tens que sair porque a culpa é tua de
gostares de estar longe do barulho das famílias, das crianças histéricas a
jogar a bola. E mais cresce a culpa, por estares com a tua namorada nas dunas
da praia. E és derradeiramente culpada porque tu gostas de te desnudar e devias
estar de biquíni, quem sabe assim ele não ousasse sacar a “pistola",
pensando que querias morrer de amores ali. As infindáveis estórias nas
primeiras idas às discotecas onde na permissão do primeiro beijo molhado, te
sai o garanhão que não compreende a frase “não quero ir mais longe" e te
obriga a tocar-lhe para o satisfazer, algo para o qual tu ainda nem despertaste
e nem sabes como se faz (mas ele teve o cuidado de te ensinar bem). Enfim, são
tantos e tantos, que neste capítulo do assédio menor – sem ofensa do “menor”,
apenas para explicar que estes não deixaram tantas marcas como os que considero
de fato traumáticos. Aqueles que tu deixas que te alterem completamente e para
sempre a vida. Será curado com o tempo, assim admites a ti mesma, quando queres
encobrir a tua própria vergonha de teres passado “a normal experiência e comum
da mulher” - algumas foram poupadas?!
Fiz o meu primeiro
curso de teatro, na ACE, no Porto e já lá vão quase 30 anos. Na altura e para
pagar os estudos e estadia, fazia muito teatro de rua e outras pequeninas
intervenções artísticas, além de trabalhar em bares e restaurantes. Mas não
tinha experiência no mundo das companhias e nos meandros e enredo do sistema de
trabalho artístico. Já tinha percebido que não seria assim tão simples arranjar
trabalho. Percebia pelos colegas que saiam da escola e ficavam desempregados.
Percebia pelos grupos de " amiguinhos" que se iam formando na escola
onde eu não conseguia fazer parte porque e até hoje nunca fui nem de "
grupos", nem de "guettos", se é que me faço entender. Sou até
muito caseirinha e ser bicho do mato nesta profissão - é uma quase sentença de
morte.
Estava no início da
carreira, recordo que estive em Lisboa por alguns meses no "Crime da
aldeia velha“ encenação do Avilez e que a experiência de bastidores foi
terrível. Era eu uma jovem imberbe e inocente mais interessada em usufruir da
capital e dos seus encantos, do que propriamente em fazer amizades
interesseiras com colegas desse então (alguns hoje até " grandes"
nomes do teatro Português). Ui o que lá se passava entre as novatas atrizes.
Recordo sentir-me muito desconfortável no meio dos atores de Lisboa, sobretudo
das atrizes que me olhavam com muita frieza. A quantidade de vezes que me
perguntavam se eu, depois desta peça, já tinha outra proposta de trabalho.
Sempre que dizia que sim, que já tinha trabalho no Porto, passava a ganhar uma
" amiga" no elenco. Menos uma ameaça. Saí de Lisboa aliviada. Mal eu
sabia o que me esperava no TEP (Teatro Experimental do Porto)
Agora sim, tenho o
coração a ter quase uma arritmia, preciso de ir beber água para continuar.
Seria tão mais simples estar a interpretar uma estória escrita pela Maria João
Pessoa, ou por ti querida Bésinha ou um Hamlet ou mesmo “Petra Von Kant”. Vá,
eu sei, agora é ir até ao fim. Nada mais tenho mesmo a perder! Ou terei? Claro
que sim, que ainda terei. Como sempre terão os primeiros que quebram as normas,
as regras que já estão anacrónicas, todo o rebelde que quebra o paradigma é
quebrado. Como o batalhão da frente, quantos se salvaram…. Muito poucas atrizes
que estão no ativo e não encontraram outra forma de sobrevivência, jamais iram
contar. Pois o seu ativo não se encontra assegurado pelo estrelato que
provavelmente nunca alcançarão. No meu caso, na realidade, já não tem importância
porque sabes que tens outra farda, outra mulher teve que ser parida em ti à
força e até encontraste outro ganha- pão. E até já percebeste tudo, é esse o
serviço que te presta o sofrimento: coube-te a ti esta escola de vida, por isso
aprende a viver, Célia, de uma vez. Mas sim, irei partilhar num derradeiro
grito de Ipiranga feminino. A avó sem netos que quer salvar os netos na mesma.
Entrei nos ensaios,
super contente, afinal, e desde que tinha saído da Academia, nunca tinha ficado
sem trabalho e já lá iam quase 3 anos. Ao lado de colegas com muito mais anos e
prática do que eu, ena, sentia-me quase privilegiada. Só pensava o quanto iria
progredir e aprender. Um elenco de luxo e um encenador vindo de Lisboa e numa
companhia, o TEP, que, apesar de na altura já não estar no seu auge, era ainda
uma companhia que oferecia trabalho de qualidade a muitos de nós artistas.
Seria (talvez) a mais jovem do elenco. Os ensaios corriam de vento em pompa e
mais ainda quando o encenador, com quem já tinha tido um encontro ainda em
Lisboa, proporcionado pela minha ex-professora de Tai chi da ACE, me convida
para também ser sua assistente. Que tendo eu um personagem que não estava
sempre em cena me daria tempo de fazer estas anotações cénicas e que no fim de
cada ensaio, me iria reunir com o dito encenador e passar as anotações. Foram
vários dias assim, em que cada vez mais estas reuniões finais se alargariam a
conversas e a um convite para tomar um copo na Ribeira. Um merecido relax
depois de um dia e noite de trabalho - palavras dele. Aceitei e recordo
comentar com a minha namorada, na altura, que já estava a ficar incomodada pela
minha chegada sempre tão tardia. Não eram ciúmes, mas sabendo que era uma
cortesia que fazia ao encenador desterrado por uns meses lá no Porto, achava
que eu estava a ser demasiado generosa sem receber mais por isso. Falei com ele
e aproveitei para lhe dizer que tinha namorada, pensando eu que tal fato, me
protegeria de qualquer avanço mais indecoroso da sua parte. É claro que já me
tinha passado pela cabeça, que aqueles convites levavam "água no
bico".
(Pausa)
- Que faço eu?
- Que fazes tu, quando
sabes que és novata na profissão. És uma mulher jovem e não sabes lutar bem com
estas situações embaraçosas. Pois não tens nome, nem peso no mercado, e as
coisas até estão a correr bem e tu não queres estragar. Que de alguma forma
almejas os grandes teatros, os grandes palcos, os grandes textos. E que fazes
tu, quando não queres dar a entender que até já percebeste o que ele quer?!
Ele um homem solito na
invicta, longe da sua cidade, onde terá a esposa e filhos. Ele um encenador com
já alguma fama e peso no mercado. Ele que aqui é "livre". E tu, na
tua própria cidade, começas a não te sentir livre. Até porque o momento que o
deres a entender, que já percebeste o que ele deseja, vais ter que te
posicionar. E tens medo de o ofender na sua masculinidade. Também tens medo que
ele negue e te deite por terra e te diga que: "deves ter a mania,
não?!" Fui reduzindo as horas com ele no final dos ensaios e deixei de ir
à Ribeira, alegando cansaço porque afinal, dava aulas de Expressão Dramática
pela manhã.
E eis que todos os
receios que tinha, chegaram em cada ensaio que começou por ser uma tortura.
Claro, de tantas recusas e esquivos meus, ele finalmente percebera que o
"rejeitara". Rejeitei os seus velados convites fora e dentro do
trabalho. Alterou o seu comportamento para comigo, uma exigência e arrogância
no seu modo de me orientar. Sentia que os meus colegas percebiam que algo não
estava bem. Mas o comportamento era total indiferença. Como se me dissessem: -
"cada um que se 'desenmerde' da melhor maneira que sabe". Quase
todos os momentos me ficaram marcados. Quando era a minha vez de entrar em
cena, ainda em ensaios, toda eu tremia como varas verdes, o medo de fazer algo
mal como ele já me tinha acostumado, aos constantes insultos ao meu trabalho
durante e nas notas finais de cada ensaio. Ouvindo várias vezes que era péssima
atriz. Fizeram recordar-me algumas aulas com o Rogério de Carvalho que e apesar
de sentir que até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me
dizer que com uma perna torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro –
opa Sr. professor, tiveste razão caralho! (Fui diagnosticada aos 10 anos, com
uma doença de Calvin Perthes na anca direita - valeu-me 12 cirurgias e um
joelho deformado – e todo um processo caótico de autoestima.)
Recordo uma entrada
que tinha na peça, na qual tinha que projetar uma gargalhada e que me saía tão
forçada. Fazia-me suar de vergonha, por saber que era horrível como atriz e nos
comentários finais que ele dava a cada ator, eu levava sempre negativas. Houve
um dia que quase cheguei ao meu limite. Ele quis explorar algo no meu
personagem e pediu para despir a parte de cima, ficar com os seios a descoberto.
Uma cena, onde eu dançava no meio e os colegas agarravam a saia grande e rodada
que tinha. Eu, e quem me conhece, sabe bem que sempre tive muito à vontade com
o meu corpo nu. E ainda hoje, sou uma fervorosa adepta de me desnudar ao sol
numa praia deserta assim como numa situação artística, que eu considere
adequada. Ali, naquela peça, naquele momento, naquele enquadramento, senti-me
violada (mal eu sabia que era exatamente o que estava a acontecer). Recusei,
houve uma discussão feia, fui a correr para os bastidores chorar. Colegas
assistiram e mais uma vez o tal " assobio para o lado". Uma das
colegas mais velhas, até me deu uma palmadinha nas costas dizendo, " vá,
isso passa, recompõe-te miúda, temos uma peça a finalizar". Hoje acredito
que estas palavras também queriam dizer: Vá miúda, eu também já por lá passei,
anda lá se não queres ficar sem trabalho.
Tinha um amigo, o
diretor da companhia com quem falei e com quem me abri. Pois cheguei ao ponto
de dizer ao Júlio, ou eu ou ele. Pobre inocente e ingénua de mim. Mas sim, o
Júlio apreciava-me como atriz e amiga. E lá teve uma conversa com o dito e as
coisas ficaram mais serenas. Estreamos. Não foi nada de especial, com muito
pouco impacto no público, apesar de bons atores e música maravilhosa do João
Loio. Acredito que nenhum trabalho artístico (ou outro qualquer) pode sair
brilhante se houver um único ator ou técnico revoltado, insatisfeito, humilhado
no trabalho.
Não muito mais tarde,
e já numa outra peça (não tenho mais vontade de contar pormenores), mas agora
no Teatro Viana do Castelo, com o diretor da altura e encenador, voltei a
passar por algo profundamente humilhante. Depois e também não muito mais tarde,
já no Teatro Nacional S. João numa peça que até me faz rir agora de tão
elucidativa deste meio, "Na hora em que não sabíamos nada uns dos
outros" de Peter Handke, outra prova de humilhação. Esta foi talvez a que
mais dano me fez, pois aqui eu já era menos inocente. Ainda assim, não aprendi
a proteger-me, nem a fazer “bem" as coisas. Sim, é disso que se trata,
aprenderes a fazer bem e a safares-te bem. E se me perguntarem: - "Porque
que não contas, agora que já começaste?!". Eu responderei - "O
caralho que te foda!"
Eu, sem ter disso
consciência, fui ganhando medo ao trabalho como atriz, afastando-me dos
grupinhos de atores e amigos dos professores da escola de teatro, e grupinho
dos ex. alunos e me enclausurando. Não foi de imediato, porque só mesmo com as
inúmeras audições onde te obrigam a expor, é que me fui dando conta, do medo
que comecei a ter a homens (encenadores, diretores). O embaraço de ser lésbica
nesta profissão era terrível. (Já para não falar no fato de que ser assediada,
"seduzida" por homens pode quase provocar nojo, quando não é a tua
preferência). Hoje em dia não sei muito bem, mas na altura, como havia mais
homens diretores hetero, era uma espécie de “handycap“ porque o corpo, o sexo
são ferramentas de arremesso. Hoje acredito e sei que a homossexualidade pode
ser perversa no meio também. Mas não me sinto parte do meio, se é que alguma
vez me senti.
Já há muito que sinto
que a atriz que há em mim é uma criança que só representa se se sentir
confortável e amada. E por isso não a posso levar a muitas audições nem
trabalhar em meios, nos quais a hipocrisia e este rio lamacento aconteça constantemente.
Faço vídeos J a peixinha dentro do seu aquário de
proteção! A peixinha triste porque sabe que dificilmente voltará a ver o mar!
Oh mar salgado,
de quanto do teu sal,
são lágrimas de
Portugal.
A ti:
Sei que partiste deste
mundo há pouquíssimo tempo. Precisamente no dia que acabei de escrever este
depoimento, recebi uma notificação no telemóvel. Foi um grande choque e
obviamente resolvi não postar. Foi um golpe duro que só a mim diz respeito.
Gostaria de ter escrito só coisas boas de ti ( estou segura que as tiveste -
esta não). Que possamos ser úteis, eu e tu, nesta nossa estória a gerações
próximas mais conscientes. Que ninguém venda a sua dignidade humana a troco de
um medo imbecil, arcaico, pelo teatro? Que se fo** o teatro! Possamos dar o
salto quântico para a reconstrução de uma humanidade sustentada numa sinfonia
harmónica que nos eleva a alma, nos preenche de êxtase e dor. E que na sua
simbiose se transforme em Amor.
Sei que o fizeste
porque vocês (alguns de vós) nem se apercebem, é assim e pronto. Acredito que
não tenha sido a única a ser submetida ao teu poder de macho. Não há vingança,
nem ódio, apenas tristeza por não ter sido capaz de te dizer na altura que tudo
podia ter sido diferente. Se tu tivesses tido consciência da minha fortaleza
como mulher e atriz e eu da tua debilidade como homem e encenador. Tu partiste,
eu ainda cá fico. No céu pediremos desculpa um ao outro.
Peace to your soul
Célia
Adenda: Peço de certa
forma desculpa, a todos os homens que mais tarde depositei a minha raiva, em
atitudes menos bonitas.
... até gostava do meu trabalho como atriz, fizera questão de me dizer que com uma perna torta torta e cicatriz, não teria grande futuro no teatro.